Aceno lenços brancos de adeus para a segunda idade e me surpreendo num chequim involuntário, primeiro da fila no balcão da semifinal da vida, de onde pretendo me despedir daqui a uns trinta anos, lá pelos noventa e tantos. Se essa história de célula-tronco não for agá, vou ficando por aqui neste chãozinho bom de Deus, ultrapassando o centenário serelepe feito Manfrini na chuva. Parece paradoxal, mas não é, podem crer. Pode soar estranho, se espero viver por pelo menos mais trinta anos, por que este tom de balanço, a escriturar ativos e passivos pela via das partidas dobradas da existência? Quando jovens, insistimos em não avaliar o passado pela certeza de que ele nada ensina, de que ele não é primordial para o devir, de que o futuro a gente faz, a gente dá um couro nele. Agora não, agora é hora de simpósios freqüentes com a minha consciência, sem culpa, mas a fim de melhorar o que não foi melhorado em mais de meio século. Coisa de velh…ôps, não, pera!
Pretendo me dedicar cultualmente à superação de aversões menores, das idiossincrasias de idade, e das birras rituais de classe, que tanto me impuseram sacrifício e renúncia. Comecei pelo jiló. Segui pelo maxixe, sarapatel, frango ao molho pardo e cheguei triunfalmente ao bife de fígado, depois de passar em glória pela rabada. Até mesmo música eletrônica, que virei as fuças, toca vez em quando em meu ai-pódi. Rípi-rópi já ouvia há tempos, e, devo confessar, gosto pacas. Racionais, Pavilhão, uma porrada deles de Brasília. Uns moleques lá de Pernambuco e Rio Grande do Sul andam fazendo um rock interessante. Ainda no rípi-rópi, tem uns neguins menos meinstrim de São Paulo que vomitam diariamente por ondas curtas e moduladas nosso repertório de culpas decorrentes da opção burra que todos fizemos em querer o mundo dos ricos num país onde os ricos não deixam brechas nem pistas. A classe média precisa urgentemente fazer uma opção pela pobreza, e entrar de cabeça nesse mundão de vales, bolsas, e os colhões de Judas. Beber cerveja barata, mergulhar no churrasquinho de calçada e simplesmente ser feliz. Vamos deixar essa onda de ser ricos com os cada vez mais ricos. E com os barões da informalidade, por cuja riqueza pagamos com desconto em folha.
No plano da vida que vou vivendo, tenho o conforto de ouvir de montão música africana, mas nada de mergulho antropológico em teses pangéicas que rejuntam continentes afastados pela ação de cataclismas. Ouço porque é bom bagaraio. Ao lado de música africana, vou ouvindo meu brega seminal de sempre. Nada de brega-Armani. Ouço o brega das casas que incandescem vermelho, brega de esperanças melancólicas, de dentes cariados e vestidos de pano barato. A trilha sonora do lúmpem. Odair, Paulo Sérgio, Amado, Waldick, Lairton, Ned. O brega do livro do Paulo César Araújo, o imperdível “Eu não sou cachorro, não”. Ouço, é verdade, ainda muito roquenrol, daqueles com guitarra enguiçada. Até pro sertanejo da mulherada já admito uma atenção de tantinho. O ônibus que amei na infância e dele me afastei pela cartilha de bons costumes da para-burguesia brasileira, voltarei a nele andar, a enfrentar roletas apertadas e motoristas mal-educados – ajeita os bonecos! Com garbo. Também andarei de van quando for preciso, e certamente portarei o pior celular. Colecionar carnês alentados pela sensação cretina de bem-estar que o carro zero a tantos traz? Nunquinha, nunca mais.
Se necessário, vou aceitar orgulhoso a cerveja da hora, o queijo passado, a castanha com pontinhas pretas, o arroz grudento, o feijão aguado, o vazamento de óleo do cárter, propaganda em tv paga, goteira em cima da cama, granola descrocante, pedágio escorchante, mecânico traíra, despachante esperto, o filho da puta que sentar na minha poltrona no ônibus e descaradamente me perguntar se eu me incomodo com sentar em outra; reunião de pais nos colégios de meus filhos, reunião de filhos na casa de pais, perguntas calhordas e respostas idem.
Quanto ao Fluminense, vou me resignar com os indescartáveis molambos marajás do Peter, idolatrar equatorianos – já tive e tenho ídolo paraguaio e me orgulho muito dele, por não equatorianos? -, depositar minhas esperanças em Xerém, aturar invertebrado intelectual que entra na internet para atacar torcedor crítico, emibiei incompetente palestrando em Samorin; convencer-me de que nossa camisa vai jogar pra caralho, de que nossa tradição acabará expulsando de Laranjeiras aqueles cretinos que lá se instalaram messianicamente para cagar regras às carradas. Vou também vibrar com classificação pra Sula e defender que o bi da Primeira Liga é a grande prioridade de 2017.
Chega com esse ranço de se aborrecer com bobagens. Decidi aceitar a inconveniência do rito de passagem para a nova pobreza com parte do enredo patético a que nos entregamos com mais ou menos resignação.
A bem da verdade, confesso que faço a essa generosidade pré-senil cinco exceções inconciliáveis com o fato de estar simultaneamente vivo e feliz: pagode, Ana Carolina, torcedor baba-ovo de cartola, cerveja Schin e o Flamengo.
O resto vale.