Vivico Alface e a predição conspurcada
Pralém de Calado Ferreira, outro tricolor que renunciou epicamente à cretinice foi Vivico Alface. E o fez de uma forma muito peculiar.
Figuraça, Vivico é Vinícius no CPF e na Certidão de Nascimento. Nascido no berço da alta classe média carioca, Vivico frequentou o que há de melhor em ensino no Rio de Janeiro, credenciando-se a um vestibular tranquilo, com direito a desembarque em universidade pública, onde estacionava seu Puma ispaider com roda de magnésio e toca-fitas Mitsubishi. Com FM. Formou-se em Engenharia de Produção nos cinco anos de praxe, com uma única dependência, que frustrou suas religiosas férias americanas, quando lapidava seu Inglês de forma a deixá-lo nos trinques. O pai de Vinícius não deixava por menos: “No mundo de hoje, se não souber Inglês, é analfabeto, a-nal-fa-be-to!”, frisava sílaba por sílaba. A família escalou vários níveis da escarpa social pela via do facilitário da Bolsa de Valores. Fortunas se fizeram da noite para o dia, na base da inçaide informeichom, alçando ao topo meia-dúzia de felizardos que fincou influências na tecnocracia financeira que servia ao Brasil collorido.
Vinícius assumiu a vice-presidência da corretora de valores do pai em maio de 92, ao completar 29 anos. Arquétipo da cultura yuppie, Vinicius batia ponto nas colunas sociais a bordo de seu apelido mundano, Vivico. Vivico Delfim Souto. Bastava um téti a téti com a moça da moda e lá estava o Vivico a ver fléchis espocarem, com sua imagem pulando dos filmes para as páginas dos jornais. Trajando ritualmente relógio Breitling, caneta Mont-Blanc, gravata Hermés e terno Armani, Vivico brilhava nas reuniões sociais com seus anglicismos pernósticos. Nada de boa leitura ou mesmo de boa música. “Viver é fazer dinheiro. Consumir é o divã da pós-modernidade”. A alguns Vivico soava apenas insuportável, mas esses alguns não compunham o enredo de sua ópera fútil, fechada, segregacionista e idiota. Para muitos seu sucesso o credenciava a partidão, e pais e mães empurravam filhas esculpidas a litros de suor em academias para a rede sempre aberta do varão do mercado financeiro. Nas festas tocadas a taças e taças de farofa de papoula, Vivico enfiava a cara no mundo com a volúpia dos que se frustram por ver o mundo pulsar em frequência sempre abaixo de sua ansiedade.
Quando quebrou na bolha da internet, para onde levou todo o dinheiro acumulado por anos e anos de especulação sórdida com a poupança de incautos, Vivico caiu de quatro, ralando a fuça no terrão nosso dos mortais. Trocou o talco pelos antidepressivos e ansiolíticos e pensou em se matar por pelo menos duas vezes. Aconselhado por um amigo a deixar o aparato químico por algo mais transcendente, matriculou-se em uma academia de ioga, onde conheceu Léa Udistóqui, um animal remanescente dos anos 60, doze anos mais velha que ele. Léa guardava um trunfo único para a geração que viu o sonho acabar aos últimos acordes da década da paz e do amor: tinha assistido de corpo vivo aos festivais de Woodstock e Ilha de Wight. “Esperei feliz pelo Apocalipse três minutos depois do show do Hendrix na ilha. Iria feliz”. Léa ensinava ioga em uma academia no Jardim Botânico, e tinha um jeito suave, compreensivo, de tratar as pessoas. Vivico, já desquitado de uma patricinha que lhe chupava as economias com a sede de um hipopótamo, chapou por Udistóqui. Em três meses já estavam morando juntos em São Pedro da Serra, uma espécie de ninho de bicho-grilo onde Léa tinha um pedacinho de chão, chão suficiente para que eles dessem início a uma horta orgânica. Verdade seja escrita, não era bem uma horta, era uma plantação de alface.
Pouco tempo foi necessário para que Léa e Vivico cultivassem as melhores alfaces da região. É onde comprava as alfaces quando morei em Friburgo. São lindas. Saudáveis e lindas. Compro a alface com o Vivico não apenas por serem dele os melhores exemplares dessa verdura indispensável à salada nossa de todo dia, mas por ser o Vivico um bom conselheiro em matéria de numerologia e cromoterapia. Compro lá, principalmente, por ser o Vivico tricolor de quatro costados, embora em sua fase yuppie restringisse aos grandes jogos suas idas à tribuna do Maracanã.
Vivico está sempre de bom humor e agora completamente limpo. Sua única digamos excentricidade é fumar de vez em quando um cigarro de alface que aperta metodicamente. Como o Vivico consegue preparar a folha de alface como folha de tabaco é um segredo que ele jamais revelou a ninguém. Quando fuma o cigarro de alface, Vivico fica introspectivo e tem visões. Coisa laite. Gostava de visitar, ainda que alface não comprasse, o alfaçal do Vivico e da Léa. Garantia de boa conversa e de lembranças regadas a rock progressivo. Certa vez, numa visita em 2005, tomei coragem para matar uma antiga curiosidade minha: por que só alface, e não uma horta convencional, múltipla e diversa em sua oferta verdureira. Sabia que o Vivico não gostava de perguntas, seja qual fosse a pergunta, mas dessa vez ele foi gentil e receptivo: “Sabe, Beto, a alface é aberta para o mundo, possui uma afetividade solidária, as folhas nascem e se curvam para salvar e proteger as outras, renunciando a qualquer interesse folhal, a alface é a rosa das verduras”. Mas, Vivico, o repolho também é assim” – retruquei sem pensar. “Não, Beto, de jeito algum, o repolho é egoísta, as folhas nascem e se voltam para o miolo, fechando-se em copas, impedindo-nos de ver e sentir as que depois nasceram. E além de tudo dá gases”. Aceitei o argumento. Vivico me convidou para entrar e começou a lentamente apertar seu cigarro de alface, o que era uma demonstração de afeto e confiança que ele oferecia a muito poucos. Vivico Alface queria falar de Fluminense: “Beto, fique tranqüilo. Seremos campeões brasileiros”. “O que te leva a pensar assim?” – perguntei. “Numerologia, Beto. Simples”. “Cumé quié?”. Alface continuou: “Vamos lá, Beto, vamos ver os ataques dos nossos grandes times, dos times que foram campeões depois de que passamos a acompanhar o Fluminense. Pra começar, aquele timaço do triênio 69/71. Cafuringa, Didi, Flávio, Samarone e Lula: 31 letras. Depois veio o Fla x Flu épico da chuva, lembra-se daquele time?”. Respondi na lata: “Marquinho, Dionísio, Manfrini e Lula”. “Conte, Beto, conte”. “Hum, deixa ver, 29, 29 letras, e aí?”. “Espere, Beto, vamos em frente”. Vivico tragou fundo seu cigarro de alface e continuou: “Romerito, Washington, Assis e Tato. 27 letras”. “Cara, não tô entendendo” – foi o que eu pude dizer ainda sem entender aonde Vivico queria chegar. “Beto, 31, 29, 27. Elementar, olhe os números sem emoção. O que compõem esses números, matematicamente falando?”. Especulei: “Uma série, uma sucessão negativa, uma regressão aritmética, isso, 31, 29, 27, é isso!”. Vivico movimentou o maxilar inferior de forma a fazer anéis com a fumaça de seu estranho cigarro, e com o tom dos vitoriosos convidou-me para confirmar sua argumentação: “Agora conte comigo: Leandro, Felipe, Tuta e Petcovic. Conte, Beto, conte!”. “Caraio, véio, 25, 25, 25!”.
Fui para casa e, já sentado de frente para o lindo vale que se espreme entre as montanhas de cabelo crespo de Mata Atlântica que emolduram a vista de minha janela, fumei o cigarro de alface que o Vivico preparou para mim. Não transcendi, só experimentei uma paz divinamente tranquilizadora.
A merda é que o Vivico não previu o Edílson.