Busto nas Laranjeiras, nome no CT e eleito maior ídolo da história do Fluminense em duas pesquisas recentes (do site Globo Esporte e do jornal Extra, ambas com participações de diversos jornalistas). Este é Carlos Castilho. O ex-goleiro foi o atleta com mais partidas a serviço do Tricolor (698) e é muito lembrado pelo episódio do amputamento de parte do dedo da mão esquerda.
Porém, Castilho foi muito mais que isso. Reportagem do site “GE” destacou a história de vida do grande ídolo tricolor. Confira:
“Abriu a leiteria”: a origem dos milagres
Suas histórias vão além do recorde de jogos e do dedo amputado. Pouca gente sabe, por exemplo, que ele iniciou na linha como ponta-esquerda de um time de rua em São Cristóvão, bairro da Zona Central do Rio de Janeiro, onde nasceu no dia 27 de novembro de 1927. E a mudança de posição parece até coisa do destino: Antônio, o goleiro da equipe, casou-se e passou a desfalcar as peladas. Castilho, então, começou a “quebrar o galho no gol”. Não saiu mais.
Já se destacava em pequenos times de bairro como o Ravioli, de Olaria, e Tupã, de Braz de Pina, ambos da Zona Norte, quando conheceu o pai de Ademir Menezes. Foi ele quem, em 1946, o indicou ao Fluminense após passar pela base do Olaria. Depois de três dias de testes, Castilho foi aprovado e passou a integrar a equipe de aspirantes. Sua estreia no quadro principal foi na vitória por 4 a 0 sobre o Fluminense de Araguari (MG), em amistoso no dia 6 de outubro de 1946. No ano seguinte já era titular.
De família humilde, antes de virar jogador profissional e começar a receber salário, trabalhou como carvoeiro, padeiro e leiteiro. E esta última profissão, coincidentemente, virou seu apelido no futebol. Em um jogo contra o Vasco no Maracanã, vencido pelo Fluminense por 1 a 0, Castilho foi bombardeado pelo ataque rival e não deixou passar nada. Na verdade, deixou passar uma bola, que bateu na trave e voltou para suas mãos. A torcida gritou em coro: “Abriu a leiteria”.
– Acredito que um goleiro sem sorte não vinga. E eu, em toda a minha vida, sempre tive muita sorte, mas principalmente como jogador de futebol. Quase sempre era ajudado por ela, a ponto de um jornalista, Paulo Rodrigues, surpreso com tanta sorte, dizer, quando as bolas começavam a bater na trave, que se abrira a leiteria. Por que eu não sei exatamente, mas, segundo ele, os leiteiros davam muita sorte. Então, passou a me atribuir o título de maior leiteiro do Brasil – afirmou Castilho em entrevista à revista “Manchete Esportiva” de 17 de janeiro de 1978.
Há, entretanto, uma teoria por trás do apelido. Reza a lenda que havia um leiteiro no bairro das Laranjeiras que ganhou duas vezes na loteria, por isso o termo virou sinônimo de “sujeito de sorte” no Rio nos anos 50. Sortudos como Castilho, que segundo relatos chegou a ver a bola explodir cinco vezes em sua trave em um Fla-Flu vencido pelos tricolores por 1 a 0. E até o fato de ser daltônico deixou de ser problema para ajudar a enxergar melhor a bola nos jogos.
Sorte que costuma caminhar lado a lado da competência. E nisso, Castilho também se destacava. Ficou conhecido como um dos grandes pegadores de pênaltis de sua época e foi um dos primeiros a se posicionar com os braços abertos no momento do chute, de forma a dar a impressão de estar maior diante do adversário. Segundo dados do site “Fluzao.info”, o goleiro não sofreu gols em 24 de 84 cobranças contra ele pelo Fluminense, tendo feito 15 defesas. Uma delas folclórica.
Castilho teria encontrado Ademir Menezes na rua na véspera de um Fluminense x Vasco e dito ao amigo que estava com um furúnculo debaixo do braço esquerdo. No jogo, houve um pênalti contra os tricolores, e Ademir pediu a bola. Cobrou justamente no canto esquerdo de Castilho, que voou para defender. Ao reencontrar o atacante, o goleiro teria pedido desculpas e se justificado dizendo que estava pressentindo que teria pênalti e armou uma “armadilha” para o adversário.
– O que ele contava, que eu me lembre, ele falava muito isso, que era um cara muito dedicado. Gostava muito de treinar, era o primeiro a chegar no campo e o último a sair, até como goleiro. Até brincava que muitas vezes chegava no Fluminense e estava chovendo, aí o pessoal falava “hoje não vamos para o campo”. Ele ia lá e puxava o pessoal para o campo (risos) – recorda Carlos Roberto, filho de Castilho.
Ao longo da década de 50, época em que o Fluminense foi rotulado de “timinho”, a maioria de suas vitórias era obtida graças às atuações do goleiro de 1.81m de altura e 1.85m de envergadura. Em um Fla-Flu de 1958, vencido pelos tricolores por 3 a 1, ele fez tantos milagres que inspirou esta crônica de Nelson Rodrigues para a revista “Manchete Esportiva” do dia 4 de novembro daquele ano:
“Amigos, o que Castilho fez, 2ª-feira, não se faz. É pior do que xingar a mãe. Diga-se, entre parênteses, que todo o Fluminense, de fio a pavio, é outro. Ou melhor: – o Fluminense que apanhou da Portuguesa, que dava vexame até nas vitórias, era um sósia, uma paródia, uma imitação burlesca do Fluminense. – o Fluminense encarnou-se nele mesmo. Houve momentos em que meu time, amigos, foi Fluminense até demais. Mas voltemos a Castilho. Podia ter jogado bem. Mas reconheço que Castilho abusou. De certa feita, caiu sentado. Era o instante em que o Flamengo, rilhando os dentes, se atirava para frente e parecia levar tudo de roldão. Cá na tribuna dos jornalistas, eu, apesar de ser um ateu, só faltava rezar. E, súbito, cara a cara com o arco do Fluminense, Henrique encheu o pé. Partiu o tiro, amigos, partiu a bomba! Note-se que o Fluminense estava ganhando pela vantagem mínima: – 2 x 1. Seria o gol do empate. Pois bem: – o estádio inteiro gritou gol. Quando parecia líquido, certo, fatal o tento rubro-negro, eis que Castilho sentado, ignominiosamente sentado, defendeu. Pasmem para o detalhe sublime: – sentado, como se estivesse em casa, numa cadeira lendo o “gibi”!
O Fluminense apresentou, 2ª-feira, um partidão. Seu futebol, sua estrutura, sua armação era um desenho. Mas, ainda que tivéssemos jogado pedrinhas, a defesa sentada de Castilho bastaria para liquidar o adversário. Depois disso, eu passei, instantaneamente, a considerar Castilho um monstro horrendo, uma espécie de Drácula da bola. E, no meu canto, estava a ver a hora em que Castilho ia fazer as restantes defesas virando cambalhotas ou plantando bananeiras. Cito uma defesa e poderia citar muitas outras. Não sei se em seguida ou antes, Castilho praticou uma outra que foi de clamar aos céus. O mesmo Henrique – sempre este homem fatal! – apanha uma dessas bolas que só aparecem uma vez na vida e outra na morte. Havia entre o atacante rubro-negro e Castilho uma distância inferior a vinte centímetros. Novamente, Henrique encheu o pé. E, outra vez, o Maracanã foi sacudido pelo berro bestial: – gol! Eu mesmo acreditei no gol. Castilho, porém, deu um salto que lembraria, mal comparando, o de uma sílfide incorpórea. E enfiou a pelota para um córner repousante. Ao meu lado, um rubro-negro, de olho rútilo e lábio trêmulo, gemia: – “Jogar assim é um crime!”
Ora, qualquer uma, das duas defesas citadas, justificava o preço do ingresso. Todo mundo devia pagar outra vez para ver o resto do jogo. O próprio Castilho podia largar o arco, podia ir para a casa, dormir. Mas ele não se deu por satisfeito. Em cima da hora, marcaram um pênalti, o segundo, contra o Fluminense. Um pênalti equivale a um soco na cara do goleiro. O infeliz sofre um verdadeiro “knock-out” moral. Imaginem dois! Ontem, porém, nem Belzebuth em pessoa conseguia varar Castilho. Moacir vai bater a penalidade máxima. O Flamengo precisava de um golzinho para atenuar o estupor da derrota. Mas, coisa curiosa! Quando a bola foi colocada na marca fatídica, uma espécie de vidência profética apoderou-se de todos os presentes e ausentes, dos que estavam ali e fora dali. Creio que, naquele momento, em todo o Brasil, do Amazonas ao Prata, o povo pensou: – “Castilho vai defender!” Tiro e queda. A bala partiu e Castilho pegou. E porque foi u monstro, eu faço de Castilho o meu personagem da semana”.
“A sina de resplandecer entre espinhos”
O próprio Paulo Rodrigues, que o ídolo do Fluminense apontou como criador de seu apelido, foi o autor de outra expressão marcante: “A sina de São Castilho é resplandecer entre espinhos”, escreveu o jornalista na revista “Manchete Esportiva” do dia 15 de junho de 1957. Foi um período de verdadeiro calvário para o goleiro: quebrou o nariz, operou o joelho, fraturou o maxilar, quebrou um dedo…
Curiosamente, suas lesões aconteciam sempre nos treinos. A mais famosa delas, do dedo mindinho da mão esquerda, foi em 1948. Ele se curou na época, mas sofreu mais três fraturas no mesmo local, que teve uma deformação óssea. Em abril de 1957, após defender um chute de Pepe no treino pela Seleção, seu dedo inchou e causou uma forte dor que o atrapalhava até para dormir. Após retornar para o Fluminense machucado, o clube montou uma junta de cinco médicos para decidir o tratamento.
Recomendaram um enxerto ou a correção do eixo, com no mínimo 90 dias de repouso absoluto. Mas o dedo imobilizado e dolorido tirava a confiança do goleiro, que sugeriu a amputação. Os médicos e sua esposa foram contra. Para convencer a todos, ele aceitou assinar um termo de responsabilidade em três vias que ficou de posse do clube. “Castilho, você é um louco”, disse-lhe o dr. Newton Paes Barreto antes de começar a cirurgia, que foi feita no dia 22 de maio de 1957 no Hospital da Cruz Vermelha, durou 30 minutos e gerou polêmica na comunidade médica na época.
– Na época em que ele jogava, bem diferente de hoje, os goleiros não usavam luvas, jogavam com as mãos limpas. E a bola era de couro, pesadíssima, bem diferente das bolas de hoje que têm alta tecnologia. Por várias vezes jogando e até treinando, ele quebrou esse dedo mínimo da mão esquerda. Só que ele não parava para cuidar direito. Quebrava, mas não tratava direito. Então o dedo ficou todo torto. Calcificava, mas começou a ficar totalmente torto e doía, incomodava. Chegou um momento que estava totalmente inviável ele conseguir jogar com o dedo daquele jeito. Depois da cirurgia, quando ia jogar, ele preenchia aquele vazio com um enchimento, uma tala… Foi uma coisa da cabeça dele, todo mundo achava ele maluco (risos). Eu acho que não existe história igual a essa – lembra o filho.
Castilho fez a amputação parcial do dedo no final de maio e no início de junho já havia voltado aos treinamentos. Como o Fluminense estava em excursão por Peru, Colômbia e Equador após o título do Torneio Rio-São Paulo daquele ano, o primeiro jogo do goleiro após a cirurgia foi pela Seleção no dia 7 de julho, contra a Argentina pela Copa Roca. No duelo, falhou em uma reposição que virou o gol da derrota por 2 a 1. Mas na partida de volta, vitória por 2 a 0 e mais um título.
Não tardou, e ele logo readquiriu a velha e boa forma. Tanto que voltou a ser convocado no ano seguinte para a Copa do Mundo da Suécia, onde o Brasil foi pela primeira vez campeão mundial. Pelo Fluminense, Castilho fez seu primeiro jogo sem o dedo no dia 21 de julho, na goleada por 5 a 2 sobre o Vasco no Maracanã. E ainda recuperou o posto de titular que estava com o paraguaio Vitor Gonzales, contratado junto ao Vasco em sua ausência e que foi destaque no Rio-São Paulo.
Novamente valorizado, e diferentemente de outros campeões mundiais que trocaram de clubes por propostas maiores, Castilho decidiu continuar no Fluminense “até o fim”. De fato, ficou no clube até o último ano de sua carreira, 1965, com 698 jogos disputados, sendo 255 sem sofrer gols. Mas a promessa não foi cumprida. Emprestado pela diretoria, aposentou-se pelo Paysandu após ser campeão paraense no segundo semestre daquele ano.
Em seguida, decidiu virar treinador. Na função, conseguiu feitos marcantes, como três títulos estaduais: dois pelo Paysandu, no Campeonato Paranaense de 1967 e 1969, e um pelo Santos no Paulistão de 1984. Além disso, conseguiu um surpreendente terceiro lugar no Brasileiro de 1977 com o Operário-MT. Há quem diga que seu sonho era treinar o Fluminense. Seu filho, porém, não confirma:
– Meu pai sempre treinou clubes fora do Rio. Muita gente até falava: “Poxa, o Fluminense tinha que chamar o Castilho para treinar o clube”. Mas não aconteceu. É claro que ele passou a ter um lado profissional como técnico, inclusive chegou a jogar (como treinador) contra o Fluminense.
Último salto: o triste fim de um vencedor
Um dos poucos jogadores brasileiros a ir para quatro Copas do Mundo – foi titular em 1954 e reserva de Barbosa em 1950 e de Gilmar em 1958 e 1962 –, Castilho acreditava que sua “sorte” não o acompanhava na Seleção – apesar de ter sido campeão como titular do Pan-Americano de 1952, na vingança contra o Uruguai na final, no reencontro após o Maracanazo em 1950.
Foram no Fluminense suas maiores glórias: tricampeão carioca em 1951, 1959 e 1964, campeão do Rio-São Paulo em 1960 – o clube o considera também como ganhador em 1957, apesar de ter sido na época da cirurgia no dedo e ele não participar de nenhum jogo – e campeão da Copa Rio de 1952, uma espécie de Mundial de Clubes da época.
Mas sabe o ditado popular: “sorte no jogo, azar no amor?#8221; A vida pessoal de Castilho lhe cobrou um preço: a depressão. Ele já havia se separado de Vilma e estava casado com Evelyna, sua segunda esposa, e morando na Arábia Saudita, onde trabalhava como treinador. Após retornarem no fim de 1986 ao Rio, ela teria se recusado a voltar ao país. No dia 2 de fevereiro de 1987, véspera da viagem, o ex-goleiro foi à cobertura da ex-mulher, em Bonsucesso, na Zona Norte, e pulou do sétimo andar.
Era uma altura de 20 metros. O relógio marcava 16h15 quando Castilho caiu morto aos 59 anos no apartamento da vizinha do segundo andar. Uma cena aterrorizante para Vilma, o filho e a empregada que lá estavam. Ninguém nunca soube ao certo o motivo do suicídio, tampouco o teor da última conversa que teve com a ex-mulher, que faleceu em 2018. O que foi noticiado pelos jornais da época é que ele já vinha reclamando de muitas dores na cabeça, tontura, e que passou os últimos dias chorando.
Castilho deixou os filhos Shirley (hoje com 66 anos) e Carlos Roberto (54 anos), ambos do primeiro casamento. Ele teve cinco netos Juliana (44 anos), Taísa (40 anos), João Victor (20 anos), Maria Victória (17 anos) e Ana Carolina (16 anos), os três últimos não conheceram o avô. Todos tricolores. No início do ano, o Fluminense convidou Shirley e Carlos Roberto para participarem da cerimônia que batizou o CT Carlos Castilho. À família, ficam as boas lembranças e eternas homenagens.
– É um motivo de muito orgulho, sem dúvidas. Até hoje, passou tanto tempo, ele ainda é considerado um ídolo da história do Fluminense. Não só pelos jornalistas, mas pela própria torcida. E essas homenagens, como essa do CT passar a levar o nome dele, tem o busto dele inaugurado há alguns anos em Laranjeiras, e tantas outras homenagens que foram e ainda são feitas a ele. É motivo de orgulho ele ser essa referência para o clube. E é muito merecido, porque foi um cara que se dedicou realmente muito ao clube, na trajetória toda como profissional sempre abraçou com muita seriedade, determinação. Da nossa parte, a gente só pode ficar orgulhoso – emocionou-se Carlos Roberto.