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Os gentios se excitam, umedecem as roupas íntimas de prazer e escárnio quando elegem o Fluminense metáfora das sacanagens recorrentes do futebol brasileiro. Os motivos são sempre criativos, mas historicamente estapafúrdios, descontextualizados da verdade dos fatos. A expressão anódina e cretina “Pague a Série B”, bordão predileto dos afetados, só serve para reforçar a convicção de que podemos tomá-los idiotas monumentais.

 
 
 

A imprensa moralmente engajadinha também destila recorrentemente ressentimento injustificado em sua crônica amargura, e induz os incautos que ainda lhes dão ouvidos e olhos a aceitar uma versão fantasiosa e sistematicamente construída: o Fluminense está na primeira divisão do futebol brasileiro por uma virada de mesa solitária como um náufrago de fábula. O comentário, retirado de seu contexto real, serve apenas à desinformação e ao reforço de um preconceito perverso.

A história do futebol brasileiro só poderá ser contada se contada comoa própria história das viradas de mesa. Não se pode afirmar onde uma acaba e começa a outra, tal a promiscuidade entre seus enredos. Mas não precisamos ir aos primórdios. Comecemos pelo ano de 1981, quando Palmeiras, Bahia, Coritiba, Guarani e Náutico, não se credenciaram a disputar a primeira divisão por desempenhos pífios nos estaduais. Mas tudo se resolveu por um gentil e imoral o convite da CBF para que todos participassem da festa da elite, sob o grotesco jeitinho no regulamento do torneio: num mesmo ano, os clubes que disputassem a Taça de Prata poderiam ascender à Primeira Divisão.

Em 1982, os beneficiários desse esdrúxulo critério foram, entre outros, AtléticoParanaense e Corínthians, os mesmos de quem vamos falar mais à frente. Em 1986, o Botafogo devia cair à luz do regulamento do Brasileiro. Mas qual o quê. O Clube dos 13 prontamente socorreu seu afiliado e promoveu a Copa União, mantendo o alvinegro carioca no andar de cima. Já em 1993, comovida com o desespero do Grêmio, que não subiu pelo campo, a CBF fez retornar à Série A os doze primeiros da B, ajudando de lambujem o Vitória da Bahia, que pulou para o elevador que o levou à cobertura em plena competição. Foi o São Caetano da vez. Há ainda os casos de São Paulo, Vasco e Santos, que não conseguiram desempenho nos estaduais de forma a credenciá-los à divisão da elite, mas foram “convidados” ao regabofe, mesura que aceitaram docemente constrangidos.

Há muito mais. Mas para o que aqui vai se argumentar é o que basta. Por enquanto.O Fluminense, pelos critérios vigentes em 1996, deveria ter sido rebaixado. Certo? Errado. Só seria certo se o campeonato tivesse transcorrido em um ambiente de normalidade esportiva. Mas não foi isso que se deu. Tão logo se encerrou a farsa, o Brasil assistiu perplexo a uma série de reportagens do Jornal Nacional em que se tirava debaixo do tapete um dos maiores escândalos, não apenas do futebol brasileiro, mas de toda nossa prolífica história de escândalos. Vinha à luz o indecente episódio do 1-0-0, batizado Caso Ivens Mendes. Sob o espanto dos brasileiros, o JN denunciava um imoral esquema de manipulação de resultados, capitaneado pelo diretor de arbitragem da CBF e pelos senhores Alberto Dualibi e Mário Petráglia, dos reincidentes Corínthians e Atlético Paranaense. O futebol brasileiro se reconhecia diante de sua maior vergonha, e transpassou o fundo do poço turbinado pela prostituição de quem por ele deveria zelar.

Quando se esperava a punição criminal dos envolvidos e o sumário rebaixamento dos clubes beneficiados pelo esquema – como veio a ocorrer, na Itália, com Juventus, Fiorentina e Lazio, em 2006, pelos mesmos motivos – adotou-se a solução salomônica e asquerosa de não rebaixar ninguém. A CBF limitou-se a punir desportivamente os dirigentes, e não os clubes imoralmente beneficiados. Naquele momento de mancha histórica de nosso futebol, a decisão escabrosa deveria ser repudiada por todos os dirigentes dos clubes não envolvidos e pela imprensa ética. Não se viu nem uma coisa nem outra. Veio o pior. Em vez de protestar publicamente contra a imoralidade, e reivindicar um direito ético e esportivo, um abjeto dirigente tricolor, destituído de representatividade da imensa maioria de nossa torcida, optou pelo deboche: abriu um champanhe que nos transformou em inimigo prioritário da opinião pública. Aquele gesto, abominável em si, teve ainda o condão de desviar do cerne das medidas necessárias para iniciar-se a moralização do futebol brasileiro a punição dos responsáveis por um episódio chulo e vergonhoso, o esquema 1-0-0. O champanhe foi o habeas-corpus da quadrilha, como se referiu aos protagonistas do escândalo o Jornal Nacional.

O Fluminense caiu em 1997. E disputou a segunda divisão. Caiu em 1998, e, para espanto de uma opinião pública descrente, disputou e ganhou em 1999 a terceira divisão, tendo a correr pela beira das várzeas em que jogamos um técnico tetracampeão do mundo. Isso só se consegue quando se é o Fluminense, por seu passado e peso na história do futebol brasileiro. Não é para qualquer um, não é para nenhum.

Estávamos preparados para disputar a Segundona em 2000, quando um imbroglio jurídico patrocinado pelo Gama – envolvendo uma vez mais o Botafogo, e dessa vez também o São Paulo do Sandro Hiroshi –, prometia inviabilizar a realização do Brasileiro daquele ano. Produziu-se à época uma das maiores excrescências da história do Brasileirão: São Paulo e Botafogo, ambos, ganharam os três pontos na mesma partida entre eles, perdida pelo Botafogo. No fim do campeonato, seria simples: o São Paulo e o Botafogo cairiam por critérios jurídico e técnico – pela punição ao São Paulo do bichano Sandro Hiroshi; e o Botafogo, pela pontuação média(critério vigente à época) insuficiente. Mas não seria simples. À semelhança de 87, com a Copa União, optou-se por entregar ao Clube dos 13 a organização do Brasileiro de 2000, que se rebatizou Copa João Havelange. Foram muitos os convidados – a JH contou com a oceânica participação de 116 clubes. Seu regulamento era um convite ao delírio, e possibilitou inúmeras “viradinhas” de mesa nos módulos inferiores. Foram mais de dez. No Módulo Azul, a divisão de elite, juntaram-se ao Fluminense e Bahia – que não subiu da Série B -, o Juventude – que caiu em 1999 -, e o América MG – rebaixado em 1998. O Gama, prejudicado pelas trapalhadas de São Paulo e Botafogo, caiu, mas ganhou na justiça o direito de também participar. Confuso, não é? Já o Paraná não teve a mesma sorte: o STJD manteve o resultado de 1 x 1 de seu jogo contra o Vasco, que simplesmente abandonou o jogo sob o comando do Rasputin Eurico Miranda, o à época manda-chuva da CBF. A JH produziu ainda um absurdo diante do qual toda a imprensa brasileira se calou: o fato de o São Caetano ter se habilitado à Libertadores sem que houvesse ganho a Copa do Brasil ou disputado a Primeira Divisão. Parece estranho, e é. Mais: a João Havelange reuniu num só torneio as três principais divisões do futebol brasileiro, embaralhando, a partir das oitavas, clubes das séries A, B e C. O Malutron, que estava na terceira divisão, jogou as oitavas contra o Cruzeiro. Poderia ter ido também à Libertadores. O São Caetano, vindo da segunda, jogou contra o Fluminense, terceiro colocado no Módulo Azul, que contou com 25 clubes. Os critérios para a definição dos classificados e para o acesso à Libertadores foram previamente acertados. Tudo foi observado rigorosamente. Para além do preconceito cretino ou da estupidez em fúria, que culpa teria o Fluminense por ter feito um excelente Módulo Azul e terminado empatado com o Sport na segunda posição? Por fim, todos obedeceram ao regulamento e jogaram seus jogos. Ao contrário de 1987, quando o Flamengo se recusou a enfrentar o mesmo Sport e perdeu o título por WO.

O Fluminense jamais foi convidado a participar da primeira divisão por não ter se habilitado a ela nos estaduais, quando esse era o critério. O Fluminense não escalou o Sandro Hiroshi, adulterando sua certidão de nascimento; não participou do 1-0-0; não comprou o Edilson; jamais ganhou de presente do poder público um estádio(pelo contrário, abrimos mão de parte do nosso para dar passagem à hoje avenida Pinheiro Machado); sequer uma vez se recusou a jogar a disputa de um título, autoproclamando-se campeão de fato; em momento algum ganhou por duas vezes no mesmo ano o mesmo campeonato; jamais derrubou alambrado para impedir que um adversário se sagrasse campeão em seu campo; nunca se beneficiou, para se manter na primeira divisão, do fato de um clube relacionar, na calada da noite, um jogador irregular, e o por pra jogar em condições digamos estranhas.

Nada disso o Fluminense fez. O que ele fez? Para não pagar uma Série B que não devia, o que o Fluminense fez foi único e ficará na memória de todos e por todos os tempos que vierem, se vierem os tempos. Em 2009, desembarcamos na Normandia dos profetas cáusticos e dos idiotas cartesianos. Em 2009, desmoralizamos o impossível, fizemos do impossível gato e sapato, um brinquedo ingênuo como a alma de um casto. Construímos a mais espetacular trajetória de fuga do cadafalso da Segundona de toda a história do futebol brasileiro, culminando com a batalha épica de Curitiba. Movidos pela força da fé de uma nação singular e pelo lema-símbolo de uma singela faixa: “Lutem até o fim”. Foi lindo. Foi e sempre será único. Mas não bastou: na esteira do feito heroico, ganhamos dois campeonatos brasileiros em três anos. Fluminense.

Não devemos nada, simplesmente nada. Muitos outros devem, mas o hábito moldou o monge e os pascácios papagueiam a tese da Série B como se engraçadinho ou inteligentes fossem. São apenas cretinos. E desinformados.

Se quisermos realmente moralizar o Brasileirão e purificar sua história, recuando no tempo para que se restaure o império da ética, que se volte pelo menos a 1996, quando a face podre se tornou visível. Aí sim seria possível zerar o hodômetro moral do futebol brasileiro, com a punição exemplar dos envolvidos no episódio Ivens Mendes, principalmente os clubes beneficiados pelo escândalo.

Não se pode embaralhar o Fluminense com o gesto isolado de um dirigente que não soube se conter em um momento grave e propiciou uma cena grotesca, desnecessária e condenada por todos nós, torcedores. Não se pode tomar o todo pela parte, principalmente quando esse todo é nada mais nada menos que a mais importante instituição esportiva do século 20. Os bastidores do futebol brasileiro, creiam, são mais sombrios do que possam supor nossos pensamentos mais diabólicos.

Haverá, no entanto, os que ainda esmurrarão a verdade e insistirão em papaguear o mantra “Pague a Série B”. A esses recomendo seguir a lição do nosso lema-símbolo de 2009: “Lutem até o fim”…contra a sua ignorância.

Vale a pena.