Pátria do torcedor

Pátria do torcedor

 
 
 

 

Bem antes de nos abrir as janelas para um mundo desconhecido que nos faz sábios multidisciplinares de superficialidades, a internet nos confinou ao “mundo do que nos interessa”. Muitos dos que leem este texto já devem ter vivenciado a experiência de participar de um grupo fechado de WhatsApp. Num grupo de condomínio, por exemplo, onde todas aquelas questiúnculas prosaicas assumem a importância superlativa de uma grande crise. A demissão de um porteiro cai como uma bomba mais explosiva que três listas de Janot ou um míssil nuclear do doidão do King Jong-un caindo pirotecnicamente sobre uma praia de Miami. Assim se dá também nos clubes, ainda que sejam esses clubes imensas expressões esportivas. Neles, um banheiro mal cuidado ganha a dimensão de um vulcão em erupção. Pode ser que o Umberto Eco tenha exagerado ao reduzir a internet a um ambiente que deu a voz a milhões de idiotas, mas que deu voz, deu. A idiotas e clínicos de opinião. E a quem merece ser considerado também. Tudo embaralhado como as cartas desses prestidigitadores de reality show.

Nesse pano de fundo difuso se dão as discussões passionais das redes sociais. Elegemos nosso grupo de interesse, selecionamos o assunto que nos diz respeito, e, por fim, os combinamos de maneira a transformá-los em nosso mundo. Tudo que ali é discutido passa a ser a “nossa” verdade universal. Ao desembainharmos uma opinião e acompanharmos sua repercussão, muitas vezes do tamanho de duas curtidas e um retuíte, nos tornamos um revolucionário incandescente, com farda e barba de molhar na sopa. Não é assim que o mundo real funciona. No mundo real, os problemas que nos afetam vão muito além daqueles que escolhemos, e exigem de nós muito mais que o êxtase de uma opinião séria ou vadia. Exigem-nos atitude, tomada de decisão.

Vamos ao futebol e ao Fluminense, que é o que nos interessa. Não faz muito tempo, a receita dos clubes de futebol era bem menos diversificada, matricial. Havia a receita social, afinal todos os grandes clubes brasileiros são simultaneamente clubes sociais; havia a receita da venda dos passes; e por fim, mas não menos importante – pelo contrário, mais importante -, a receita da bilheteria dos jogos. A receita social sempre foi insignificante diante das outras duas que compunham com ela a unidade de receitas de um grande clube. Era simples. Se o time protagonizava em campeonatos, os estádios e os cofres enchiam. Se acertasse na equação de compra e venda de jogadores, melhor ainda. E o clube…bem…o clube era apenas o clube, com seus convescotes e conspirações menores confinados aos muros de sua sede social. O torcedor comum, que, em resumo, era a principal fonte de receita dos clubes, simplesmente não se interessava pela paródia política intramuros, algo tão distante à sua realidade como o teorema da regra da cadeia. Com o time bem, ia ao estádio e a receita respondia. Com o time mal, se dava o inverso. Simples. O torcedor era o patrão do clube, e exercia esse patronato por seu livre-arbítrio de acompanhar o clube nos estádios.

Com a explosão da economia dos esportes profissionais a reboque dos interesses comerciais da grande mídia e da institucionalização da exploração dos direitos econômicos e de imagem dos atletas, a atividade ganhou um grau de sofisticação que não caberia mais nos modestos padrões de gestão que os sócios abnegados seriam e são capazes de prover. Mas, no Brasil, isso não se deu na prática. Novos tempos exigiriam novo marco regulatório, com a profissionalização dos clubes, com a responsabilidade esportiva, com a separação do clube social da atividade profissional. Qual o quê. Num país onde o futebol e a política se misturaram de forma promíscua e improdutiva, com leis e normas surgidas ainda na ditadura do Estado Novo, mexer com as regras do jogo é muito mais complexo que possa supor nossa vã cretinice.

Deu-se o que temos hoje. Os clubes sendo tocados por grupos de interesse com notória incapacidade de responder aos novos desafios, e a economia do futebol se tornando cada vez mais complexa e demandadora de altos padrões de gestão. O torcedor, afastado dos estádios, sua pátria intocável, passou a ser cobrado nas redes sociais por obrigações que não lhe cabem. Associe-se! Vá aos arremedos de estádios! Compre material oficial! Torne-se sócio-futebol! Para quem falam esses novos profetas? Para os 12 milhões de desempregados formais, ou vinte milhões entre formais e informais? Para o torcedor comum, envolvido em sua luta diária para subsistir com o mínimo de dignidade?

Esse torcedor comum quer ir ao estádio, apesar de todos os obstáculos que precisa enfrentar – insegurança, horário dos jogos, transporte precário, preço do ingresso, etc. Sem protagonização e políticas públicas que façam do ato de ir aos jogos uma opção segura e confortável, e economicamente suportável para a maioria, continuaremos nas mãos da máquina de mídia e interesses cartoriais das federações. A nós restará restringir o mundo real ao “mundo do que nos interessa”, enquanto nos manifestamos histericamente nas redes sociais para os ouvidos surdos da grande massa de torcedores.

Essas distorções estruturais se prestam a estimular um meio de cultura para a proliferação da incompetência dos dirigentes amadores nos clubes de futebol em oposição à necessidade de precisão cirúrgica nos investimentos esportivos e nas decisões gerenciais. Amarrados a grupos de interesses por um lado, e exigido, por outro, pelos altos padrões de especialização de uma economia complexa, os dirigentes optam por simulacros de gestão profissional e buscam abrigo nas facções que vão mantê-los politicamente estáveis em seu mundo higienizado. Erram com a segurança de quem não responderá por seus erros.

No Fluminense, foi o que se deu dramaticamente em 2016, mas isso é assunto para outra semana.

Enquanto isso, no “mundo do que nos interessa”, sobrevive nossa irrenunciável paixão, o melhor combustível para a mudança real que se avizinha. Estoquem-na. Será necessária.