Foto: Divulgação/Conmebol

Em carta aberta publicada no site The Players’ Tribune, e divulgada nas redes sociais pelo Fluminense, o zagueiro Nino se despediu do Fluminense e dos torcedores tricolores com texto para lá de emocionante. O atleta foi vendido para o Zenit (RUS) e deixa o Tricolor após cinco anos. Leia a íntegra abaixo o texto escrito pelo defensor:

Eu já tinha ouvido aquela música, claro.

 
 
 

Quem cultiva a semente do amor
Segue em frente e não se apavora
Se na vida encontrar dissabor
Vai saber esperar a sua hora

Eu já tinha ouvido, mas não daquele jeito. Nem naquelas circunstâncias. Era muita gente cantando ao mesmo tempo e muito alto, forte, vibrante. Tinha uma felicidade, um astral diferente naquele mar de vozes que invadiu o nosso vestiário no Beira-Rio.

Por um segundo, enquanto eu calçava as chuteiras, pensei que fossem os torcedores do Inter.

“Não, não pode ser. Essa energia aí é coisa da nossa torcida, não tem outra não.”

De fato, era a galera tricolor cantando. A melodia tinha chegado devagar e agora tomava conta da nossa mente, dos nossos corpos e dos nossos corações.

Às vezes a felicidade demora a chegar
Aí é que a gente não pode deixar de sonhar
Guerreiro não foge da luta e não pode correr
Ninguém vai poder atrasar quem nasceu pra vencer

A gente entendeu o recado e subiu pro campo abraçado no sentimento que embalou o Fluminense na Libertadores: coragem.

Era o segundo jogo da semifinal e a atmosfera estava de arrepiar. A primeira partida, no Maracanã, já tinha sido mágica: o nosso plano era vencer e seguir pra Porto Alegre com a vantagem, porque todo mundo sabe que jogar lá é complicado. Antes dos 10 minutos já estava 1 a 0 pra gente, gol do Cano. Mas aos 44, perdemos o Samuel, expulso. Aos 49 eles empataram. E viraram pra 2 a 1 aos 18 do segundo tempo. O nosso momento mais delicado na competição.

Perdendo em casa com um jogador a menos… Como chegaríamos pro jogo da volta lá no Sul?

Nessas horas, a gente fica tão obcecado em reverter o momento ruim que é difícil perceber o que se passa fora do campo. Naquela noite no Maraca, porém, enquanto a gente se posicionava pra reiniciar a partida depois do segundo gol deles, naqueles poucos segundos, eu resolvi dar uma olhada em volta. Talvez eu buscasse ajuda, um sinal, alguma esperança.

Então, o que eu vi foi uma loucura. O estádio inteiro em festa. Não parecia que a gente tinha tomado gol, parecia que a gente tinha marcado. O time inteiro sentiu a vibração. Olhei pros meus companheiros e na cara de cada um a mesma expressão de: “Beleza, nós vamos lá empatar”. Não era um desejo, uma vontade. Era uma convicção.

“Vamos lá empatar logo isso!”

É dessa coragem que eu falo. A coragem que tá na música que a galera passou a cantar nos nossos jogos.

A coragem de acreditar.

Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé
Manda essa tristeza embora
Basta acreditar que um novo dia vai raiar
Sua hora vai chegar.

Aí, aos 32 do segundo tempo, o Arias cobrou escanteio, eu cabeceei pro Cano e ele empatou o jogo.

Ok, o Germán pôs a bola pra dentro, mas quem marcou aquele gol foi a nossa torcida. Aqueles caras na arquibancada tiveram a coragem de acreditar que eles podiam fazer diferença. Tiveram a coragem de acreditar num time lutador, mas cheio de fantasmas do passado na Libertadores pra lidar.

Esses caras foram demais. Eles recolocaram o Fluminense dentro da semifinal. Foram eles que, percebendo o momento crítico, de que talvez a ponte pra decisão pudesse ruir, vestiram a camisa do Samuel e, jogando o segundo tempo com a gente, ajudaram a sustentar a gente nessa travessia.

Quando terminou a partida, a minha sensação era de estar dentro de uma das maiores demonstrações de amor da história do futebol. Eu não ia ver nada mais emocionante que aquilo, nem que vivesse mil anos. Mas o Fluminense é f***, mermão. Uma semana depois, no Beira-Rio, foi maior. Mesmo em inferioridade numérica na arquibancada, nossa torcida cantou ainda mais alto, pro Brasil inteiro ouvir e pra colocar a gente na final.

O grande barato de ter jogado nesse Fluminense campeão da América é que nós fomos um time de amigos. A gente criou uma amizade fora de campo que foi fundamental dentro. Nesse grupo não tinha jogador de cara feia por não ser relacionado nem pro banco. Não tinha jogador com raiva por atuar fora de posição ou por ser substituído. Não tinha jogador com inveja do sucesso do artilheiro.

Pelo contrário: o que tinha era a nossa coragem de enterrar o egoísmo e a vaidade e ficar feliz com cada colega que brilhava, que decidia os jogos. Ao longo da caminhada sempre esteve claro pra nós que, em famílias como a que nós formamos no Fluminense, o brilho de um filho é resultado do esforço de todos.

E quem começou a organizar a casa pra essa família prosperar foi o presidente Mário Bittencourt. Ele sempre me pareceu um cara que valoriza a importância da palavra continuidade no futebol. Na cabeça do Mário, manter o núcleo principal do elenco e a filosofia de jogo de um ano pro outro é a base de tudo.

Essa é foi a semente de um Fluminense vencedor.

Demorou cinco anos pra brotar, crescer e dar frutos, mas valeu a pena. A árvore está bem enraizada, mais forte do que nunca. E eu, que cheguei em 2019, tenho orgulho de dizer que ajudei a regar.

Na verdade eu cresci junto, sabe? Cresci lutando contra o rebaixamento no Brasileirão, cresci perdendo clássicos e finais no Estadual, cresci sendo desclassificado nos pênaltis na Libertadores, depois na pré-Libertadores contra o Olimpia, uma tristeza terrível que acabou servindo de adubo para a colheita que viria, e precisei crescer bem rápido quando me tornei o capitão do time.

Pra maioria das pessoas talvez não seja um fato tão relevante, mas eu nunca vou esquecer da emoção que senti.

Foi num jogo da Libertadores de 2021, contra o Santa Fé, na Colômbia. O Fred foi substituído e, sem que eu esperasse, mandou me entregarem a braçadeira dele. Eu sou um cara cauteloso por natureza, mas em nenhum momento perguntei: “Oxe, por que eu?”.

O Fred tinha 38 anos e estava se aposentando depois de uma vida gloriosa em Laranjeiras. Eu tinha 23, quinze a menos, e acho que ele enxergou em mim algumas características parecidas com as dele. Talvez as de um cara com as mesmas preocupações em relação ao bem-estar geral do grupo, um cara capaz de ouvir e se fazer ouvir pelos colegas, de ser a voz do treinador dentro do campo, de ser alguém que tomaria um tapa na cara numa final de Libertadores e ficaria no chão até que o agressor fosse expulso.

Eu aprendi direitinho com o melhor professor, é ou não é? Valeu, Fred!

Ter sido o capitão do Fluminense nesse período tão especial, ao lado de outra lenda como o Marcelo, me honra demais. Mas a responsabilidade é grande. O mais difícil é não encontrar as melhores palavras quando o time precisa delas.

Aquele jogo das oitavas contra o Argentinos Juniors, em Buenos Aires, por exemplo. Baita sufoco. Eles tinham um sistema de marcação difícil pra gente e, pra complicar, abriram 1 a 0 logo no comecinho. Depois, o Fábio fez uma série de defesas que pelamordedeus. Aí teve aquele lance em que o Marcelo sem querer machucou um adversário.

Ver o Marcelo abalado daquele jeito mexeu com a gente. As coisas não estavam boas. Se perdêssemos, seria complicado virar no Maracanã. Mas aos 42 do segundo tempo, um golaço do Samuel nos salvou. Pra mim, foi o momento-chave da campanha.

Terminamos a partida em êxtase, acreditando na caminhada. E mesmo assim, quando descemos pro vestiário, eu não encontrei nem uma mísera palavra boa pra falar como capitão do time. Eu estava emocionalmente esgotado.

Naquele dia a minha cabeça voltou no tempo pra uma época em que eu vivia um momento oposto, de querer desistir do futebol. Eu tinha 17 anos. Depois de começar no Sport, estava no Mogi Mirim, pra onde fui levado pelo Rivaldo. Mas, sem ser relacionado para os jogos depois de dois anos, eu comecei a me perguntar aonde aquilo ia me levar.

Num fim de ano eu voltei de férias pra Recife e conversei com meu pai: “Olha, pai, eu trabalho duro todos os dias, mas não estou vendo meu esforço dar resultado. Acho que o futebol não é o meu caminho. Tô com vontade de parar com a bola e continuar os estudos”.

Meu pai, que é um homem de origem humilde que sempre acreditou na educação e se tornou juiz, mas nunca menosprezou o poder dos nossos sonhos, me falou: “Filho, o futebol é o seu grande amor. Não vá desistir dele assim. Tente mais seis meses. Até o meio do ano Deus vai te colocar no profissional”. Eu fiquei atônito: “Mas pai, eu não sou relacionado nem pro banco do sub-17! Como é que em seis meses eu vou pro profissional?” Ele só me olhou com carinho e não disse mais nada.

Eu era volante, no começo. Mas quando voltei de férias a nossa equipe estava sem um zagueiro e eu pedi ao técnico para treinar na posição. Senti que era a minha última chance. Treinei de zagueiro e ele gostou. Comecei então a ser relacionado pro banco, porque me tornei um jogador 2 em 1: volante e zagueiro. Aí numa partida o zagueiro titular é expulso, eu entro. Na outra, o volante titular se machuca, eu entro. Fui ficando no time e jogando mais.

No meio do ano o Rivaldo decide encerrar as categorias de base e eu: “Caramba, logo agora que eu tô engrenando?”. Ele disse que alguns poucos jogadores da base iam ficar. E eu estava entre eles.

Do Mogi eu fui pro Criciúma e vivi um começo traumático lá. Nas sete primeiras rodadas do meu primeiro Campeonato Brasileiro, nós tínhamos seis derrotas e um empate. A nossa melhor partida foi uma em que eu fiz um gol contra e nós perdemos de 1 a 0. A torcida me vaiou, xingou, eu voltei pra casa arrasado pensando numa frase de um antigo treinador da base no Sport: “Às vezes o futebol pode ser uma máquina de triturar gente”.

Eu já tinha muitas dúvidas sobre o futebol, muita insegurança e intranquilidade. Isso aumentou de um jeito quase insuportável. O futebol era o amor da minha vida, como bem disse meu pai. Mas era também a minha maior preocupação. Eu tinha muitas perguntas, sempre tive. E as respostas pra elas eu só comecei a receber nesse Fluminense do Fernando Diniz, um cara que conhece bem essa aflição.

Uma pergunta que sempre me atormentou foi:

“E se eu fracassar?”

O Diniz, que é um treinador apaixonado pelo futebol, me respondeu com outra pergunta:

“O que é fracassar?”

Esse cara me ensinou muita coisa, mas me ensinou principalmente a enxergar certas coisas que realmente importam de outro jeito. Eu tinha medo de fracassar. E talvez eu tenha transformado esse medo no meu combustível pra não fracassar. Mas é pesado viver assim. Então o que é fracassar? Falam muito em “dinizismo”, que o dinizismo isso, o dinizismo aquilo. Pra mim o dinizismo é ter outra perspectiva sobre tudo, enxergar o mundo e a vida de outro jeito. Pra isso é preciso ter coragem. E amigos.

É desse clube corajoso e desses amigos de vestiário e arquibancada que me ensinaram a viver que eu me despeço com esta carta.

Acreditem em mim: não está sendo confortável fazer isso. Achei que as palavras me faltariam de novo, por causa dos sentimentos tão misturados.

Dá pra estar feliz e triste ao mesmo tempo?

Sinto uma alegria boa, uma leveza na alma, quando penso no que passamos juntos. Que bom que ouvi meu pai, Deus me abençoou e eu não desisti! Mas também bate uma tristeza danada de ir embora.

Sim, eu sei que é bom partir podendo levar tanta coisa boa na bagagem. E no Fluminense eu colecionei as maiores conquistas e as melhores lembranças da minha carreira. Mas é duro pensar que não vou mais ouvir toda semana o canto que tantas vezes nos empurrou e nos levantou, seja no Maracanã, em Porto Alegre ou na Arábia.

Ah, como eu gostaria de agradecer cada torcedor pessoalmente, um por um. Olhar nos olhos de cada um e dizer: “Vocês não fazem ideia de como foram importantes”.

Torcida tricolor, obrigado pela coragem. A coragem de sonharem comigo o sonho mais bonito de todos. Muito obrigado, de coração!

E, antes que eu chore e não consiga dizer mais nada, só me resta aceitar que chegou minha hora. Saio com a certeza de que ainda voltarei a ver um novo dia raiar em Laranjeiras.

Porque a nossa história não termina aqui.

Tá escrito…