Nem tudo é cíclico. No futebol brasileiro, por exemplo, por mais que o discurso de austeridade financeira seja uma bandeira que fomente a chamada “boa gestão”, isso ainda não é uma realidade das principais equipes do país. O Fluminense, por exemplo, viu sua dívida crescer 22% só na temporada passada.
Confira a abordagem do jornalista Rodrigo Capelo, da Revista Época, sobre o tema:
“Mudam os dirigentes, mas não muda o comportamento. Em meio à crise econômica que achata o país, os principais times brasileiros de futebol bateram recorde de faturamento. Em 2016 foram R$ 5 bilhões arrecadados, 41% a mais que no ano anterior. Boa notícia. Se sobrou dinheiro, enfim, seria lógico crer que os cartolas pagariam dívidas e poupariam algum trocado para não se estreparem em 2017. Só que o futebol é uma draga. Quanto mais ganha, mais gasta. E, no Brasil, onde não há nenhum tipo de autorregulamentação para pregar responsabilidade, quando sobra é hora de gastar ainda mais.
O melhor indicador do que foi feito com o dinheiro excedente está no endividamento dos clubes. ÉPOCA extraiu os dados dos balanços financeiros e, com o apoio técnico de Cesar Grafietti, analista financeiro do Itaú BBA que se dedica às finanças do futebol há anos, classificou as dívidas dos times. O panorama mostra que entre os 24 principais clubes do país, os 20 que jogaram a primeira divisão em 2016 e os quatro que foram promovidos e a disputarão em 2017, as dívidas aumentaram 2% e chegaram a quase R$ 6,4 bilhões.
Para entender por que o endividamento subiu mesmo com tanto dinheiro a mais, precisamos separar as coisas. Nem toda dívida é igual. O maior credor dos clubes de futebol é o governo, a quem essas 24 equipes devem R$ 2,7 bilhões. Todo esse dinheiro corresponde a impostos que não foram recolhidos por dirigentes ao longo dos anos. Só em 2015, com a criação do Profut – uma lei federal que possibilitou aos clubes parcelar os valores devidos em até 20 anos e ganhar descontos em multas, juros e encargos –, é que a dívida foi revista.
A dívida fiscal dos times aumentou 8% em 2016. Não quer dizer que os impostos voltaram a ser sonegados pelos clubes. Não é o caso. O que foi combinado pelos dirigentes na renegociação do Profut em 2015 tem sido cumprido até agora. A questão é que, sobretudo com uma dívida tão grande e com um prazo tão alongado, a correção anual pela inflação fará com que o valor suba um pouco todo ano. Isso não quer dizer que houve novamente irresponsabilidade por parte dos cartolas – até porque, nas condições atuais, com quase toda primeira divisão patrocinada pela Caixa, quem ignorar os impostos acaba por perder o dinheiro público que vem do banco.
A segunda maior dívida do futebol é bancária. Embora arrecadem centenas de milhões de reais com televisão, patrocínios e torcedores, quase nenhum clube tem um caixa organizado a ponto de sanar as despesas só com essas receitas. Por isso dirigentes recorrem a bancos para tomar empréstimos. É a dívida mais perigosa porque, para convencer os banqueiros a lhes emprestarem dinheiro, os dirigentes dão receitas futuras como garantia. Caso não honrem com os compromissos, os clubes correm o risco de perder tudo o que têm a receber da emissora de TV ou do principal patrocinador no futuro. Neste caso, a dívida bancária dos 24 clubes soma R$ 1,7 bilhão.
Os clubes reduziram, sim, sua dívida bancária em 2016, mais precisamente em 6%. O problema é que isso é muito pouco diante do dinheiro excedente que entrou no caixa – as receitas subiram 41%, lembra? Em outras palavras, para que a escolha tomada pelos cartolas fique mais clara, os clubes diminuíram o montante que deviam a bancos em R$ 120 milhões, enquanto a arrecadação aumentou em R$ 1,6 bilhão. Era de se esperar que a grana a mais fosse usada para quitar boa parte dos empréstimos com bancos ou, ao menos, fazer um colchão para aliviar gastos em 2017. Que nada.
A terceira maior dívida é trabalhista. O cartola promete mundos e fundos para contratar jogadores, deixa de pagar os salários no meio do caminho e vai parar na Justiça do Trabalho. É um tipo de endividamento que sai muito caro porque, além de sacanear os atletas que ficaram sem receber e ainda levam a fama de vilões perante as torcidas, as receitas dos clubes são comprometidas por penhoras. Acontece muito no Rio de Janeiro. Quando o time vai a campo e arrecada milhões com as bilheterias, por exemplo, o juiz (do tribunal, não o árbitro) retém uma parte na fonte para que os jogadores recebam. Aqui estamos falando de R$ 1,1 bilhão, uma dívida trabalhista que aumentou 3% em 2016 em relação a 2015.
Afinal, se os clubes bateram recorde histórico de arrecadação, mas as dívidas aumentaram, onde foi parar o dinheiro? Em contratações de mais atletas. O Corinthians gastou R$ 53 milhões em novas aquisições no decorrer da temporada, um reajuste considerável em relação aos R$ 9 milhões que tinha investido no ano anterior. O São Paulo aumentou o gasto em contratações de R$ 34 milhões para R$ 89 milhões. Assim fizeram Atlético-MG, Botafogo, Cruzeiro, Fluminense, Grêmio, Internacional e Santos, todos clubes que, em medidas diferentes, enfrentam problemas financeiros. O Vasco foi o único que reduziu a gastança em 2016 – por um motivo razoavelmente simples: na Série B a demanda por novos investimentos é mais baixa.
O dinheiro excedente de 2016 não é regra. O futebol brasileiro bateu recorde em arrecadação porque os clubes venderam direitos de transmissão para o período entre 2019 e 2024, antecipadamente, e receberam luvas por isso. É aí que está o problema. Quando as receitas caírem em 2017, porque não haverá mais luvas a receber, os clubes nem terão poupado dinheiro para os gastos e prejuízos habituais, nem terão reduzido tanto quanto podiam suas dívidas mais perigosas. Além disso, terão aumentado seus custos com os jogadores que contrataram na bonança de 2016. Nada disso aconteceria se, a exemplo do que fez a Europa com suas regras de fair play financeiro, tetos de gastos fossem estabelecidos pelos próprios clubes em consenso. Mas no Brasil cada um faz o que bem entender, e a visão do dirigente, amador, só vai até o ano seguinte, quando termina seu mandato. O problema fica para depois.”