Na morte do Telê
A morte antes de mais nada é uma imensa sacanagem. Ficamos flanando pela vida a ver a vida como um tívoli parque sem fim, e vem a morte, sorrateira, com seu condão de lembrar nossa temporalidade. Efêmeros, imaginamo-nos eternos ao fechar defensivamente os olhos ao passar do tempo, consumindo-nos com vaidades estéreis, ambições mesquinhas, inveja do carro do vizinho e ressentimentos inócuos. Ao recusarmos a simplicidade como via preferencial na rota da felicidade, enredamo-nos em uma teia patética de valores que sequer de longe lembram nossa essência.
Morreu o Telê, e com sua morte esmaecem-se um pouco as lindas cores que um dia fizeram um menino chorar diante de uma figurinha carimbada que lhe completara o álbum e lhe trouxera um sentimento de felicidade plena, até então jamais experimentada. Naquele dia um clube de três cores entrou para sempre na vida daquele menino, e se lhe revelou como ambiente seguro, refúgio intemporal para todas as incompreensões que nos reconduzem mecanicamente ao universo insondável de nossos fantasmas. Cercado pela atmosfera segura daquelas três cores a não deixar morrer no menino o lúdico de sua infância, a dar sentido ao delírio, jamais esse menino foi solitário. Não terei do Telê apenas saudades, mas o reconhecimento por tornar minha vida possível.
Na aposentadoria de um amigo tricolor
Hoje é o último dia em que você acessa sua caixa de entradas a partir de Adrianópolis, sua segunda casa, o lugar onde os dias sempre começaram à noite. Às 17 horas você dará os primeiros passos numa nova fase de sua vida, com menos exigências formais e com mais tempo para se dedicar à família, aos amigos, ao Fluminense e a você. Chegue tranquilo, pois o mundo que o espera lhe será tão generoso quanto você o foi com o mundo de que você se despede. Não haverá turbulências desnecessárias nem angústias do não-feito. Você cumpriu com o mérito de sempre uma linda trajetória funcional, cujo reconhecimento não se limita aos companheiros de trabalho: todos seus amigos reconhecem em você um animal ético, solidário, e um técnico competente, que se dedicou com insurpreendente garra e honestidade a quem lhe pagou o salário.
Sua cabeça, irmão, encontrará no travesseiro de todas as noites o conforto de uma consciência limpa. Este mundo novo que você tateia lhe será confortável como os velhos tênis que tanto lhe agradam. E haverá sempre ali, indomada, arrebatadora, às vezes conforto, às vezes aflição, a paixão pelo nosso Fluminense, que é a casa que nos guarda e consola.
Num trecho do prefácio de “As Laranjeiras Imortais”, do grande tricolor Marcelo Meira.
Ao pousar a última lauda dos originais deste livro em minha escrivaninha, dando cabo assim a uma lenta degustação que vinha temperando aqueles dias de emoção da leitura, fiquei simultaneamente feliz e frustrado. Feliz pelo fato de o Marcelo ter escrito um livro definitivo sobre a paixão do torcedor, um livro à altura de “Febre de Bola”. Frustrado, porque o fim da espera das remessas contendo doses homeopáticas de prazer e sofrimento tricolores provocava em mim uma espécie de interrupção de rito, um anticlima para a excitação que a leitura descontinuada me provocava em seus intervalos. Reli o livro agora de uma vez. E o descobri provocantemente diferente. E assim o foi a cada releitura. As histórias do livro emulando novas histórias, novos adornos das mesmas histórias. Vida chamando vida, a cada detalhe de cada jogo lembrado, a cada lembrança que a lembrança desse jogo nos fazia lembrar. Não se reconta uma história de amor sem que a ela se acrescente a cada relato um novo enlevo. Este livro, e nisso reside o que o diferencia de um livro de memórias comum, não é apenas um livro de memórias tricolores. É um livro sobre o quanto se confundem no torcedor a sua vida e a história de sua relação com o clube de sua paixão. São a mesma história. Como nas velhas escrivaninhas, uma gaveta só se abre se a outra que lhe tranca for aberta. Em nossos escaninhos de memória de torcedor não há legenda do que é vida e do que é paixão. Há apenas oferta de amor irrestrito. Somos assim mesmo. Por isso parecemos tão estranhos aos olhos dos normais, aos olhos dos que se ocupam em nos achar patéticos quando escolhemos nas festas e reuniões os cantos da sala para em gestos histriônicos mergulharmos na obsessão enquanto eles falam de amenidades mundanas.
Ao relatar suas memórias tricolores, Marcelo Meira cumpre brilhantemente seu objetivo. Como convém a um livro que trate da paixão do torcedor, não cabe aqui o cuidado metodológico de um Spinoza a destrinchar racionalmente a cabala luriânica. A paixão do torcedor é auto-explicativa. Ela se revela, e só a entenderá quem lhe dedicar dever de ofício ou a ela se rende impotente. Sente-se, e só.