O ano era 1936. Fluminense e Flamengo decidiriam o Campeonato Carioca no Estádio das Laranjeiras. Nas bancas de toda a cidade os jornais promoviam a partida com mais de uma semana de antecedência. O Fla x Flu já era a principal instituição cultural da cidade e o dia do jogo, ainda mais em uma final, era suficiente para decretar uma espécie de feriado informal em ruas, comércio e repartições. Dias antes do clássico o Jornal dos Sports lançou um troféu para celebrar a melhor torcida.
Nos dizeres do historiador Renato Soares Coutinho – em seu livro “Um Flamengo Grande, um Brasil maior”, editora 7 letras, fruto de tese de doutorado em história política na UFF – “o Jornal dos Sports foi adquirido por Mário Filho, com o auxílio fundamental de duas pessoas. Abrirei aspas para trecho da página 38 da obra: “Filho contou com o apoio de dois empresários para poder adquirir seu próprio jornal, o Jornal dos Sports. Vendo que o JS não passava por um bom momento financeiro, Roberto Marinho, do Jornal O Globo, e José Roberto Padilha, presidente do Flamengo, apoiaram Mario Filho na compra do JS”.
Na segunda-feira o JS anunciava destacadamente, na primeira página, que a torcida do Flamengo venceu o torneio de torcidas. Na parte baixa da capa, com menos destaque, lia-se: Fluminense Campeão Carioca.
Um ano depois, em novembro de 1937, o golpe do Estado Novo – que aboliu partidos políticos, dissolveu o congresso e outorgou uma nova constituição (usualmente chamada de “a polaca”, por seu flerte com ideias fascistas) – trouxe novo cenário para o país: era preciso criar narrativas, insuflar o patriotismo do povo, trazer a ideia de que o sentimento nacionalista estava acima de tudo. Incumbido desta grande missão midiática nacional ficou o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, um órgão oficial do governo autoritário que se mantinha à fórceps no poder. Ainda nos dizeres de Coutinho, pág. 105, “os mesmos elementos que norteavam as ações do DIP durante o Estado Novo, também orientavam as campanhas publicitárias do Flamengo (… ) as diretrizes propagandistas que os guiavam eram as mesmas. E situar-se ao lado de um agente público bem sucedido na tarefa de promover a sua legitimidade sem dúvida era estratégia interessante para o Flamengo”.
2013, última rodada do Brasileirão sendo decidida no domingo. Flamengo escala jogador irregular na última rodada, num sábado. Imprensa noticia timidamente o acontecido. No dia seguinte a Portuguesa de Desportos repete a escalação irregular e salva o Flamengo do rebaixamento. Site de estatística brinca com o fato, afirmando que é mais fácil ser morto por um raio do que ocorrer o mesmo erro, numa mesma rodada – a ÚLTIMA – do campeonato. A Lusa é rebaixada, salva o Flamengo e a imprensa coloca a culpa no Fluminense, que cairia apenas se o Flamengo não fosse rebaixado.
Tem muito mais. Das papeletas amarelas ao escárnio que é a divisão de cotas. Da sede na Gávea presenteada pelo governo (em contraponto à sede tricolor, cortada em boa parte para a passagem da Rua Pinheiro Machado) à delicadeza da grande mídia que insiste em tratar o crime ocorrido na morte dos meninos da base como “acidente”.
O Flamengo, meu amigos, tem sua história ligada ao apoio desmedido de imprensa e de governos desde a segunda metade da década de 30. O Fluminense, não.
Muito por isso, o Fla x Flu será sempre muito mais que um jogo.
O Fla x Flu será sempre uma questão de posicionamento, de pertencimento. De subir as rampas e ficar do lado certo, sentir-se do lado certo, ser do lado certo.
Ao longo de décadas o Fluminense representa muito mais do que um rival para os flamenguistas. Representa a certeza aterrorizante que eles têm de que algumas vezes por ano vão ter que ficar frente a frente conosco. Nada é tão difícil para os caras.
Porque você pode criar narrativas, contar com o respaldo midiático, com o apoio deliberado das instituições. Mas não pode deixar de sentir.
E ali, quando olham para a gente, enormes ou diminutos, não importa, não são apenas as pernas que tremem, são as almas que são postas em perspectiva. Para nós, a redenção, para eles, o dissabor da verdade que não se diz, mas que, ainda assim, se sente.
Vejam, não há um clube neste planeta como o Fluminense. Não há camisa, que não a nossa, que tenha sido dada por morta, que tenha frequentado a sala do demônio e se recusado a dobrar os joelhos. Não há história como a de nosso clube em sua volta do umbral da terceira divisão para acumular conquistas em espaço de tempo tão curto. Não há precedentes da negação da matemática como fizemos em 2009, no início da caminhada do título de 2010.
Amigos, já mataram o Fluminense. Todos entendem isso? Já mataram o Fluminense. O Fluminense é que não morreu.
O Fluminense, ao longo de sua história, jamais inclinou-se. Jamais contou com o respaldo do sistema e até quando rivaliza com clubes de fora sente a ira dos que têm que conviver com ele.
O Fluminense incrivelmente continua respirando, mesmo após ser massacrado por um séquito de incompetentes que se enfileiram há anos no comando do clube.
O Fluminense vai ao campo brigar em evidente desigualdade de condições, contra clubes com muito mais dinheiro e, como se não bastasse, com o luxuoso auxílio de arbitragens venais e federações parciais.
O Fluminense vai. Intransitivamente.
Porque tem alma forjada na alegria e na dor de sua torcida. Uma torcida que jamais artificializou-se e que comumente é atacada por seus rivais como sendo uma torcida de “viados”, como se orientação sexual alijasse alguém de seu posicionamento clubístico.
Eles cresceram, são enormes, mas ainda não perceberam, não entenderam nada nesses 100 anos.
Enquanto elitizam suas arquibancadas, o time de todos segue na sua luta, sem nada dever a rigorosamente ninguém.
E é na luta do Fla x Flu que o grito dos caras engasga, não sai, e isso independentemente do que acontece em campo.
É na luta do Fla x Flu que botamos em perspectiva toda a diferença entre um clube grande e um grande clube.
É na luta do Fla x Flu que temos a oportunidade de olhar de frente para todos eles.
E de calá-los. Calá-los como sempre.
Porque sabemos que estamos do lado certo. E porque respeito não vem da grana da TV, nem dos paparicos dos jornais e programas esportivos.
Vem da camisa. A mesma camisa que impõe o silêncio à maioria e que acumula muito mais conquistas nos confrontos decisivos. A camisa que assusta!
Amanhã eu vou ao Fla x Flu da FERJ.
Porque sou Fluminense.