O jornalista Carlos Heitor Cony, membro da Academia Brasileira de Letras e torcedor tricolor, morreu na noite da última sexta-feira, aos 91 anos. O Fluminense fez uma homenagem ao cronista através da rede social Medium, republicando o poema de autoria do escritor denominado “Sou do clube tantas vezes campeão”,  em julho de 2002, na “Folha de São Paulo”, ano do centenário do Mais Amado do Brasil. Confira:

“Sou do clube tantas vezes campeão”

CARLOS HEITOR CONY

O menino gostava de algumas coisas, de outras não. Por exemplo: quando perguntavam o que ele queria ser, ele não queria ser nada. Na realidade, nem queria crescer. Sendo, ou fingindo-se de mudo, não dava resposta. Até que lhe perguntaram de repente: “Qual é o seu time?”

 
 
 

Inesperadamente até para ele, respondeu na bucha: “Sou Fluminense!” (Certamente com ponto de exclamação e tudo).

Está traçado mais do que um destino, mas um estigma. Como não ser tricolor? O menino tinha oito a dez anos, o Fluminense era tricampeão carioca e, com o intervalo de um ano apenas, quando deu a base para a seleção nacional que disputaria a Taça Jules Rimet, na França, seria bicampeão. Em 39, devido à Copa do Mundo, interromperia a série triunfal.

Basta consultar os centros de memória de hoje, a coleção dos jornais de ontem e o coração dos seus torcedores de sempre. Sim, o Fluminense foi tricampeão em 36, 37 e 38, perdeu em 39 e seria bicampeão em 40 e 41. Por pouco seria hexacampeão -título que nenhum outro clube possuiu e que talvez o Brasil, como seleção, consiga.

Um garoto daquele tempo não teria opção. Sabia o time de cor, um dos melhores de todos os tempos do futebol nacional: Batatais, Moisés e Machado; Santamaria, Brant e Orozimbo; Sobral, Romeu, Russo, Tim e Hércules.

Antes, o Fluminense já havia sido tricampeão logo no início, antes de ter dado aquele fruto bastardo que seria o Flamengo. Repetiu a dose em 17, 18 e 19, com um time também antológico, com Marcos Carneiro de Mendonça no gol, Coelho Neto na arquibancada e um filho em campo.

Ele nem era nascido, mas era como se fosse. Seu DNA estava em gestação, anos depois se concretizaria no menino calado que antecipava o adulto falastrão.

Evidente que nem tudo foram flores. Vieram os abrolhos, as amargas da vida e da circunstância, tempos de cabeça baixa, mais baixa do que inchada, mas sempre aparecia um clarão, uma estrela rasgando a tenebrosa noite das frases adversas.

O menino cresceu e, homem feito, teve uma recaída brutal no seu ufanismo tricolor. Foi há mais de meio século, é verdade, mas para ele é como se fosse amanhã. Ao contrário do famoso time do quase hexacampeonato, entravam em campo alguns craques avulsos -avulsos, mas enormes, como Didi, Pinheiro e Castilho-, mas a maioria era de jogadores medianos, até mesmo alguns que mereciam a abominável categoria dos pernas-de-pau.

Ninguém se convencia, naquele ano, de que o Fluminense valesse alguma coisa. No turno e no returno, o time jogava sempre numa aparente defensiva, deixando o campo e a bola para o adversário. Após cada vitória, que parecia suada, de 1 x 0 ou de 2 x 1 nos jogos mais fáceis, os entendidos, os formadores de opinião, povo, nobreza e clero zombavam do Fluminense, devia ter perdido e perdido de goleada, fora salvo pelas traves ou pela leiteria do Castilho, uma leiteria sobrenatural que alimentava o time e o torcedor.

Era a marcação por zona que Zezé Moreira introduzira em nosso futebol, substituindo a diagonal de Flávio Costa, que adaptara o WM dos ingleses às necessidades pátrias. Era assombroso ver o time não disputar a bola, deixar o adversário atacar, recuar todo mundo e mesmo assim vencer. O Fluminense não disputava a bola, disputava o espaço, a zona. E foi campeão em 51, com a mesma tática. Dirigido por Zezé Moreira e com o Fluminense quase todo na seleção, o Brasil seria campeão pan-americano no Chile, em 1952, trazendo pela primeira vez um título internacional para nós.

O menino ressuscitou dentro do adulto, foi a todos os jogos, ao alçapão de Bariri, território minado do Olaria, a Conselheiro Galvão -nunca tinha ido a Madureira, mas fez questão de ir lá, ver Didi jogando contra o clube no qual estreara no futebol carioca.

Exagerado, foi até Canto do Rio, que tinha um campo esquisito em Niterói, nem era carioca da gema ou da clara, era niteroiense mesmo, não valia o sacrifício ir ao Caio Martins, precisava pegar barca -mas ele ia, como o peregrino vai ao templo, cumprindo um ritual e sacudindo o pó das sandálias, embora nas barcas da Cantareira não houvesse pó, mas perigo de naufrágio.
Nos torneios Rio-São Paulo, pegava o carro, enfrentava a antiga Dutra esburacada e fatal, pegava uma geral do Pacaembu e voltava, à noite, na mesma e esburacada via Dutra.

Torcer pelo Fluminense era desdobrar fibra por fibra o coração. Mas valia a pena.

O futebol mudou, no conteúdo e na forma, adotou a substituição dos titulares quando se machucam ou jogam errado. Ele lembra o jogo em que Castilho machucou a mão e foi jogar na ponta-esquerda. Carlyle foi para o gol.
A torcida também mudou, ficou presa à TV — ele também. Não era mais o menino e talvez nem fosse mais um adulto. Se bobeasse, dia desses poderia chegar aos cem anos, como o seu time chega agora, coberto de tradição e glória, mesmo quando não vence. Que importa? Tricolor de coração, é do clube tantas vezes campeão.