Eles não estão mais entre a gente, mas todos se emocionaram de alguma forma com o Fla-Flu de 1995, vencido por 3 a 2 pelo Tricolor com gol de barriga de Renato Gaúcho. O jogo histórico completa 20 anos e o clube, na onda da comemoração, recorda as visões de Assis, Mário Lago, Telê Santana e Armando Nogueira (este último um jornalista botafoguense) sobre o jogão que garantiu o título ao clube das Laranjeiras.
Veja aqui como cada um analisou a partida histórica:
Assis: ‘O Flu venceu porque foi tricolor até a alma’
Meu Deus, estou tremendo da cabeça aos pés. A vitória do Fluminense me fez chorar muito. É muita emoção para um dia só. Mas isso é Fla-Flu, só poderia ter acontecido em um Fla-Flu. O Fluminense venceu porque foi tricolor até a alma. O que eu quero dizer com isso? É que os times tricolores que dão certo reúnem três características: talento, conjunto e muita, muita luta. E o Renato pegou o espírito da coisa. Foi o líder dessa campanha maravilhosa. Chamou para si a responsabilidade. Seu primeiro gol deixou o moral lá em cima. Ali, eu vi que dava para ganhar.
No meu tempo, o Fluminense tinha como líderes Romerito, Delei, Duílio e eu. Renato trabalhou por quatro, devolvendo a auto-estima a todos e, o que é melhor, resolvendo dentro de campo. Agora, o maravilhoso deste time é que tem outros jogadores talentosos. Leonardo, por exemplo. É um jovem que já havia provado seu valor. Mas ontem ele se consagrou, mostrando que não treme em decisão. Aílton foi outro que me encantou. Acreditou até o final na vitória e fez uma jogada de extrema beleza, que resultou no segundo gol de Renato. Este gol me levou à loucura, saí berrando pela minha casa, aqui em Curitiba.
É claro que cheguei a temer pelo pior quando Romário fez o primeiro gol do Flamengo. Quando Fabinho fez o segundo, entrei em desespero. Antes, o Fluminense administrava bem o resultado. A bola simplesmente não chegava a Romário. Mas, de repente, o Flu recuou demais, deu muito espaço.
Mas o Fluminense tem um time e tanto. Um meio-campo que marca e se movimenta muito. O do Flamengo foi dominado a maior parte do jogo. Djair e Rogerinho estão de parabéns. Todo o time, sem exceção, está de parabéns. E não posso esquecer de Joel Santana, que armou o Fluminense para ser o Fluminense. Agora, só me resta comemorar em estado de graça.
Mário Lago – ‘Renato funcionou como um capataz’
O Fluminense é um time de operários, todo mundo sabe. E Renato Gaúcho funcionou como um capataz. Um capataz camarada, é bem verdade. Numa equipe assim, de trabalhadores, ninguém foge da luta, não há ninguém que não tenha muita garra, muita vontade de vencer. E Renato, o líder, mostrou onde começa o caminho das rosas. E começou com um gol do próprio Renato. E depois, surgiu Leonardo, o insinuante, que também fez o seu. Leonardo, aliás, é um excelente jogador, uma revelação.
O Fluminense mandou no primeiro tempo. Mas quando o Flamengo empatou, pensei: isso parece o Fla x Flu da Lagoa ao contrário. Explico. Em 1941, o Fluminense foi campeão ao empatar com o Flamengo em 2 a 2, na Gávea. O Flu, claro, tinha a vantagem do empate naquele ano, à semelhança do Flamengo neste. E ainda por cima Romário tinha quebrado o tabu, marcando pela primeira vez um gol no Fluminense em jogos oficiais.
Mas que nada! O Fluminense nunca deixou de acreditar na vitória, apesar de a tarefa ter-se tornado difícil, pois perdeu três jogadores, expulsos. Sem querer tripudiar, o meu time provou que mesmo com oito jogadores é o melhor.
Aílton fez uma jogada antológica, que Renato, sempre ele, concluiu do jeito que deu. Estou muito feliz com a vitória tricolor. O Fluminense tem me dado muitas alegrias.
Telê Santana: ‘O clássico dos clássicos’
Mais uma vez, ficou provado que o Fla-Flu é o clássico dos clássicos. Torcedor de um ou de outro não pode ter problema cardíaco. São fortes emoções durante o jogo todo. Haja coração! Minha posição é tranquila. Estou analisando depois de conhecido o resultado. Mas confesso que se fosse um comentário ao vivo eu não me arriscaria a fazer qualquer prognóstico sobre o vencedor até o apito final.
Foi um grande jogo. O Fluminense conseguiu surpreender o Flamengo, considerado o favorito e que tinha a vantagem de jogar pelo empate, com muita determinação, técnica e garra incomum. Com os 2 a 0 ainda no primeiro tempo, eu achava que seria difícil o Flamengo reagir. Até porque o Romário, que é sinônimo de gol, não estava muito inspirado. Por outro lado, Sávio, atacante habilidoso, sofria boa marcação de Ronald.
No começo do segundo tempo o Fluminense ainda tinha o domínio do jogo. Até que o violento chute do Branco no travessão acordou a torcida rubro-negra, que passou a incentivar o time. Minutos depois, com o gol de Romário, ela passou a mandar no time. Então se viu o Flamengo de sempre. Com muita raça conseguiu o empate num belo gol de Fabinho.
Naquele momento, tudo levava a crer que o empate seria o resultado final. O Flamengo com a vantagem de um homem, com a justa expulsão de Lira, certamente saberia manter o resultado e festejar.
Veio então aquele momento mágico de um Fla-Flu. Numa jogada brilhante de Aílton, que premiou sua atuação na partida, Renato mostrou todo o oportunismo do grande atacante: escorou o chute com a barriga e garantiu a vitória. Naquele momento me veio à lembrança de um outro Fla-Flu que, como o de ontem, faz parte da galeria dos inesquecíveis: o de 1969, quando eu estreava como técnico no futebol profissional. O Fluminense ganhava do Flamengo por 2 a 0, cedeu o empate, mas Flávio desempatou na fase final e o Fluminense festejou.
Armando Nogueira – Renato foi o personagem do Fla-Flu
A chamada mídia passou a semana do Fla-Flu enchendo a bola do Flamengo. O Fluminense era tratado como sparring. Em alguns jornais, o Fla era a capa do caderno de esportes; o Flu, página de dentro. Até psicólogo de galinheiro sabe que um time subestimado vira leão. Embalar o Flamengo com o refrão do “já ganhou” era tudo o que queria o técnico Joel Santana para atiçar o amor próprio dos seus jogadores. Quanto mais a imprensa, o rádio e a tevê incensavam o Flamengo de Romário, mais crescia a santa fúria do tricolor de Renato. Um time afrontado de véspera transfigura-se, encrespa-se na hora da verdade. No esporte, como na vida, o homem ressentido é capaz de mover milhões de mundos.
Quando Ailton chegou à linha de fundo, chispante, ninguém do Flamengo se deu conta das juras que o jogador fizera a si mesmo de que, no Fla-Flu, haveria de devolver, com requinte, a humilhação que sofrera, no começo do ano, quando o desprezaram na Gávea, por imprestável. Os dois dribles monumentais que deu, antes do chute fatal, soaram como o assomo do coração injuriado. Mais uma vez, ficou provado o poder devastador do ressentimento.
E Renato Gaúcho foi o personagem do Fla-Flu. Ele encarnou, como jamais alguém encarnou, as virtudes técnicas e morais de uma equipe. Fez do clássico uma fábula. Em pleno jogo, viveu intensamente o papel de ícone tricolor. Gritou, correu, xingou, sorriu, chorou. Foi patético na hora do empate. Foi épico o jogo todo. Foi místico, no fim da partida: ungido, rezou de joelhos, uma breve oração aos santos de sua devoção. Em torno dele, a torcida tricolor sacramentava-lhe a glória de herói e campeão.