Vivendo grave crise financeira, o Fluminense convive com um discurso quase unânime ao quanto à sua realidade: o clube precisa passar por uma auditoria e se profissionalizar. Parte desta ideia foi colocada em prática com a contratação da Ernst & Young (EY), como o NETFLU havia antecipado no dia 2 de fevereiro de 2017. Considerada uma das grandes empresas do ramo, o trabalho a ser desempenhado pela EY, contratada com a ajuda financeira de muitos sócios e conselheiros, foi explicada pelo presidente Pedro Abad, no dia 17 de abril do ano passado. 

No fim da temporada passada, o contrato com a empresa terminou e muitas orientações foram deixadas nas Laranjeiras. Curiosamente, cerca de um ano após a utilização dos serviços, o relatório não fora disponibilizado pelo clube para a maior parte dos entes políticos. O sigilo em torno do estudo das contas do ex-presidente Peter também fora bastante questionado. Nesse sentido, o NETFLU ouviu um dos principais executivos da Ernst & Young. Ele explicou, dentre outras coisas, algumas das recomendações dadas ao Fluminense e apontou a política enraizada no futebol brasileiro como o maior vilão na busca pela profissionalização de um clube de futebol.

 
 
 

Confira e entrevista completa: 

NETFLU – Como foi a entrada da EY?

ALEXANDRE RANGEL – Eu conheço bem todo o projeto. O projeto teve alguns pilares. O primeiro era fazer o orçamento do clube. O Fluminense nunca teve um orçamento estruturado antes. Tanto que saiu uma vez aquela famosa nota do balanço de 2017 sobre o deficit de R$ 75 milhões, se não me engano, que no final foi de 39, mas foi republicada 65 no balanço. Até ali não se sabia que tinha aquele débito. Foi fruto do nosso trabalho. E aí saíram várias recomendações de profissionalização do clube, estabelecido dentro de várias normas, até para evitar que esse tipo de situação de descontrole financeiro acontecesse, incluindo a formação de uma profissional. Depois disso veio o Marcus Vinicius Freire, mas aí a gente já tinha encerrado o nosso trabalho.

NETFLU – O clube, obviamente, não é obrigado a seguir as orientações de vocês, correto?

ALEXANDRE RANGEL – Exatamente. A gente orienta, diz o que entende que é o caminho a seguir. A gente trabalha com a maioria dos clubes grandes do Brasil. Estamos fazendo projetos no Flamengo, Cruzeiro, Atlético-PR, onde estamos trabalhando na abertura de capital do clube. Entramos na CBF naquela confusão com a Fifa, inclusive voltando a crescer receita, patrocínio. Tentamos levar para o futebol o profissionalismo. Levamos às gestões dos clubes o mesmo tipo de cuidado administrativo que qualquer empresa tem em seguimentos normais, como controlar custos, marketing, receitas, coisa que os clubes às vezes falham muito.

NETFLU – O Fluminense adotou as orientações da EY?

ALEXANDRE RANGEL – Eu não estou mais no dia-a-dia do clube. Algumas coisas eu sei que evoluíram, como o controle do orçamento. Parece que o clube não tem mais déficit corrente este ano, o que é uma grande vitória. Talvez seja deficitário por conta de pagamentos de juros e empréstimos, mas parece que o operacional conseguiu cortar muitos juros.

NETFLU – Vocês trabalharam diretamente com quem?

ALEXANDRE RANGEL – A gente trabalhou muito com Abad, Diogo Bueno… agora o Fluminense tem muita coisa a fazer. O Fluminense tem uma necessidade muito urgente de se profissionalizar. Ele perdeu aquele senso de clube nacional. Precisa extrair o máximo da torcida que tem, gerar muitas receitas e cortar custos de maneira muito forte. A receita do Flu hoje até que está muito boa se comparar com Vasco e Botafogo. A questão do Fluminense, quando começamos a trabalhar com o clube, é que tinha um custo de folha, herdado da Unimed e uma série de gastos que ocorreu na gestão anterior, maior do que a do Flamengo, com uma receita 50% menor. Esse trabalho que o Botafogo fez, de trazer os custos para baixo, usando baixo, o Vasco fez, o Fluminense também teve de fazer. E fez muito bem, porque a base é o forte do Fluminense. Agora precisa ter uma gestão muito profissional, porque o clube não tem margem de erro, por conta de todo o problema que essa transição da Unimed gerou com tudo.

NETFLU – Muito se critica a quantidade de PJs (pessoas jurídicas) no clube. A principal argumentação para este cenário costuma ser um valor pago menor com impostos. O que a EY orientou em relação a isso?

ALEXANDRE RANGEL – Na verdade, isso hoje em dia até não é mais um problema, porque a reforma trabalhista mudou completamente a forma como você pode contratar. Então, pode-se ter outros modelos de contratação, que não seja PJ, para conseguir reduzir custos. Agora tem que fazer uma transição. Às vezes eu vejo a discussão sobre PJs no Fluminense. Mais importante é saber tomar decisões profissionais. O problema do Fluminense foi naquele ciclo passado de contratações em sentido econômico, colocar gatilhos salariais que eram jogados para gestões seguintes, cláusulas escondidas em contratos que geravam ônus adicionais. Isso é uma bola de neve que precisa mudar.

NETFLU – Falando em gatilhos ou casos que poderiam gerar ônus em gestões seguintes, um caso importante, noticiado inclusive pelo NETFLU, foi o da diretora jurídica, que na época também acumulava o cargo de CEO. O presidente Peter Siemsen renovou o contrato dela até o final da próxima gestão e, se o novo presidente a demitisse, teria de pagar uma multa proporcional ao salário até o final do contrato, em 2019.

ALEXANDRE RANGEL – Esse caso específico eu não acompanhei. Esse tipo de situação no futebol, não só no Fluminense, é super comum. Por que isso acontece? Hoje num clube de futebol padrão, o presidente tem o poder de fazer qualquer coisa, assinar qualquer contrato sem a necessidade passar pelo Conselho Fiscal ou Conselho Deliberativo. Decisões como estas, estatutariamente na maioria dos clubes, ainda são delegação exclusiva do presidente. Numa governança corporativa, isso não é adequado. Foi uma das coisas que a gente colocou. Deixamos como legado no clube, para que fosse aprovada toda uma reforma estatutária para que esse tipo de situação não fosse mais possível de ser feita, seja com pessoas do futebol ou administrativo. Se um presidente quiser contratar um jogador por R$ 100 mil e tiver um gatilho para o mesmo receber R$ 500 mil na próxima gestão, ele pode. Estatutariamente, em qualquer clube pode, exceto um ou dois. Enquanto isso não acabar, qualquer clube está sujeito a fazer isso, por questões políticas, desconhecimento ou até boa intenção. Não importa. São situações que numa empresa normal o processo de governança não permite. Além da questão financeira, deixamos essas orientações e procedimentos políticos para que fossem implementadas gradativamente no clube com a anuência com os poderes do clube. Em alguns casos, passa por alterações estatutárias, são processos longos.

NETFLU – Mudar estatuto no Fluminense costuma ser uma ação demorada. Desde a última eleição, por exemplo, fala-se na mudança para viabilizar o foto online. Até o momento, a mudança não ocorreu e o clube não vem falando sobre o tema…

ALEXANDRE RANGEL – Eu acho assim, é uma opinião muito particular. É importante que o Fluminense tenha em mente que exista um consenso político não em relação a quem vai liderar o clube, mas em torno de ideias. Eu vejo as discussões do Fluminense gravitando entre “foi fulano, foi Mário, Peter, Abad, Flusócio…”. Discutem as pessoas, mas não discutem as ideias. Qual é a visão de futuro do clube? Como o Fluminense vai lidar com as questões de dívidas, estratégias, como clube formador, de ter operações internacionais ou não… eu vejo discussão em cima de culpa e de pessoas, não de temas estratégicos. Enquanto o Flu não criar um consenso político em torno de ideias de longo prazo, um plano de estado, não de plataforma de gestão do candidato A ou B, dificilmente vai caminhar na velocidade que outros estão caminhando. Tem clubes como o Grêmio que estão extramente bem geridos com governanças sofisticadas, em torno de empresários no Rio Grande do Sul, não existe mais aquela questão do conselho social, existem empresários fazendo parte do conselho de administração… o Flamengo está fazendo várias reformas estatutárias, o Palmeiras em São Paulo com gestão avançada… tem alguns clubes se destacando e o Fluminense ficando para trás, com um potencial imenso. O Fluminense tem uma torcida muito boa, monetizável, um quadro social com pessoas de muito conhecimento, de altíssimo nível. Mas a coisa fica girando por essa lavagem de roupa suja, culpa, políca, sem que passe pelo momento de tensão futura. Agora, como sair disto é uma resposta que só o clube pode dar. Basta fazer o que os conselheiros fazem em suas empresas de capital de aberto.

NETFLU – A aprovação das contas do Peter foi uma das situações mais polêmicas nesta atual gestão. Como funciona para um clube de futebol, na visão da EY, a fiscalização da contabilidade de uma gestão anterior? Quando uma gestão possui a maior parte do Conselho Deliberativo, praticamente tudo o que circula por lá acaba sendo um ato político, não em favor da instituição?

ALEXANDRE RANGEL – Eu fiquei sabendo. Não tive detalhes do porquê que foi aprovada. No geral, é o quadro que você falou. Nos clubes, o mecanismo de fiscalização é muito tênue. Se o balanço está “ok” no ponto de vista contável, o Conselho Fiscal aprova. É basicamente um aprovador de balanço. O Conselho Fiscal, por exemplo, não pensa se é bom ou ruim. Existe muito pouco poder seja para o Conselho Deliberativo ou fiscal, a não ser por uma decisão puramente política de questionar algo a mais do que o rigor contável. O rigor contável não é onde o problema acontece. O problema acontece no bom ou mal uso do dinheiro, que é uma delegação exclusiva do presidente. A mudança disto também passa por nosso trabalho. Fizemos uma série de orientações, falando de alterações estatutárias, onde você colegia mais as decisões e aumenta a capacidade de fiscalização dos órgãos de controle, inclusive com a criação de auditoria interna, como qualquer empresa de capital aberto. É mais para você manter o mesmo nível de governança coorporativa. Talvez nesse turbilhão político que o clube está, as pessoas não consigam ver o cenário a longo prazo. Acho que seria mais prático investir as energias em como não repetir isso no futuro. Certo ou errado, a consequência está aí. Agora tem que se lidar com a consequência.

NETFLU – Os caminhos já foram traçados, a partir das orientações da EY. Quais são as perspectivas para o futuro no caso do Fluminense em curto prazo?

ALEXANDRE RANGEL – Todo o processo de recuperação financeira é um processo de anos. Não estamos de recuperação de dois, três anos, mas de diversos anos. O Fluminense está no seu segundo ano de tentativa de equacionar contar. Aparentemente está indo bem. Equacionar contas significa corte de custo. O Fluminense está nisso há dois anos. E passa muito pelo profissionalismo do clube. A perspectiva de curto prazo é boa do ponto de vista de equilíbrio de custo, evitando que o clube seja punido, dentro da nova legislação de fair play financeiro do futebol brasileiro, não perder o Profut, acho que esse isso é o principal objetivo de curto prazo. Agora, depende do caminho que o Fluminense vai tomar. Se o Flu continuar operando como clube social, onde diversas correntes políticas se degladiam pelo poder, certamente isso não vai levar a nada promissor. Agora se tiver um compromisso verdadeiro, onde se pense no Flu acima das correntes partidárias, existe a chance do Fluminense seguir como clube de grande relevância nacional. É difícil hoje olhar para a política do Fluminense e ver um movimento de criar um consenso político em termos de ideias profissionais e modernizadoras, mas olhando de forma distante.

NETFLU – Muita gente demonizava a atuação da EY por conta das orientações de cortes, incluindo de funcionários. Como trabalhar com essa imagem de “carrasca” quando há prestação de serviço para um clube onde é necessário fazer uma reestruturação financeira?

ALEXANDRE RANGEL – A gente está acostumado com isso. Fazemos isso em várias empresas, o ano todo e há muito tempo.Fazemos com profissionalismo. Temos de entender qual é a real necessidade do clube, se é melhor ter ou não ter determinada quantidade de pessoas. É muito estudo e análise fria em cima do resultado. Às vezes pior do que discutir o administrativo é quando você tem que fazer corte no futebol, porque aí também mexe com a torcida, mas acaba sendo inevitável também. O principal componente de custo no futebol é o departamento de futebol, jogadores e comissão técnica. Então é ali que maior parte dos ajustes precisam ser feitos.