Há dois tipos de torcedores do Fluminense: os que conhecem a quarta estrofe do nosso hino e os que não a conhecem. “Vence o Fluminense/ Usando a fidalguia/ Branco é paz e harmonia/ Brilha com o sol da manhã/ Qual luz de um refletor/ Salve o Tricolor”. Nesses tempos de política à flor da pele, com tanto ódio e mentiras sendo destilados pelos corredores do clube e nas redes sociais, é bom recordar os versos menos conhecidos do hino do clube. Paz, harmonia, luz. Nosso Fluminense anda precisando dramaticamente disso. Talvez por isso eu tenha optado por um texto sobre o que nos une – antes de falar sobre o que nos afasta. Sobre a nossa essência grandiosa, muito mais do que sobre a mesquinhez humana. É hora de celebrar a grandeza do Fluminense, não a desunião pregada por grupos radicais em cujos dicionários poder vem antes de glórias e grandeza.
Além do hino, uma outra coisa que me ajuda a diferenciar os tricolores nobres dos demais tem a ver com a capacidade que eles têm de compreender a nossa trajetória heroica, quem somos, de onde viemos. E esse tema me remete ao ano no qual Maradona deu ao Napoli – e à pobre e discriminada província de Nápoles – o primeiro título de sua história. No dia seguinte à formidável conquista, o muro do cemitério da cidade apareceu pichado com uma inscrição, claramente dirigida aos mortos: “O que vocês perderam!”. A frase do anônimo torcedor napolitano pode ser empregada com total acerto em relação aos grandes times da história do Fluminense, como, por exemplo, a Máquina de 1975-1976, que para mim foi o time com o maior número de craques jamais reunido para defender um clube. Sim, porque se o Santos de Pelé e Coutinho era o Santos de Pelé e Coutinho, a Máquina de Carlos Alberto, Edinho, Paulo César Caju, Gil, Doval, Rivelino e Dirceu era a Máquina de Carlos Alberto, Edinho, Paulo César Caju, Gil, Doval, Rivelino e Dirceu – se é que me faço entender.
Os escritores que se dedicam a publicar textos em homenagem aos seus clubes do coração gastam inúmeras horas de trabalho, incontáveis galões de tinta, toneladas de papel e um sem número de gigabites de tentando provar que seus clubes de devoção são os mais tradicionais, os mais gloriosos, os mais importantes, ou ainda os mais cults entre todos. Mas eu afirmo, sem medo de errar, que todos esses textos são obras ficcionais. Só um autor tricolor pode produzir textos de exaltação a um time capazes de serem classificados como não-ficcionais. Porque o óbvio ululante ulula que o único clube capaz de ser apontado como o mais tradicional, o mais glorioso, o mais importante e o mais cult, sem um pingo exagero, é o Fluminense. Só o Fluminense. Sempre o Fluminense.
O Flamengo, por exemplo, passa a vida pretendendo ser o mais glorioso. Ledo engano. Cumpre ressalvar que eu menciono a esforçada agremiação da Gávea não por implicância ou por deferência – já que ela não passa de uma filial tricolor, criada em 1912, quando o nosso time, que havia conquistado cinco dos seis títulos estaduais disputados até então, decidiu se dividir para dar mais emoção ao campeonato. Talvez por isso o nome do nosso clube apareça no hino deles como uma grande ameaça, um ai-Jesus, uma verdadeira assombração. Sem querer tripudiar, afirmo, serenamente, que os mais gloriosos somos nós.
O maior dramaturgo e cronista da história do Brasil, Nelson Rodrigues, disse certa vez que “cada brasileiro, vivo ou morto, foi Flamengo por um instante”. Os flamengos (que era como o genial Nelson se referia aos rubro-negros) comemoram essa frase como se fosse um título. Só que eles não repararam em outra frase do mestre: “O Fluminense nasceu com a vocação da eternidade”. Pois aí está: o que Nelson quis dizer, com a picardia que os tricolores percebem e os flamenguistas ignoram é que comparar o Flamengo com o Fluminense é como comparar um instante com a eternidade.
Passemos de um extremo ao outro para falar do Botafogo. O Botafogo, simpático clube de regatas, almeja ser o mais cult e o mais sofrido dos times brasileiros. Outro engano. Só aceitarei discutir isso com quem tenha conhecido os mais profundos grotões do sofrimento. Com alguém que, como eu, tenha acompanhado um jogo da terceira divisão, debaixo de chuva, em plena geral do Maracanã (as arquibancadas estavam interditadas para obras), contra o Náutico. Ou contra o Dom Pedro, time formado por bombeiros de Brasília. Os botafoguenses não podem tirar do Fluminense o título de equipe mais estoica. Não até terem visitado as brenhas da terceira divisão, depois de três – eu disse três! – rebaixamentos consecutivos.
O Vasco? Bem, acho que o Vasco não se candidata a ser maior do que o Fluminense em coisa alguma. Talvez na antipatia dos dirigentes. O próprio estádio de São Januário, orgulho do clube da Zona Norte, foi apenas o segundo estádio de clube a abrigar os principais jogos do Brasil. No início do século passado, a joia arquitetônica batizada de Estádio das Laranjeiras, com o Corcovado à direita e o Palácio Guanabara à esquerda, teve o privilégio de ver a gênese de um patrimônio universal batizado de Seleção Brasileira. Com o Vasco eu encerro o capítulo do Rio, e poderia depois dedicar alguns parágrafos à comparação do Fluminense com os grandes de São Paulo e do resto do Brasil. Mas, como o espaço é limitado, digo apenas que o hino do tricolor da terra da garoa começa assim: “Salve o tricolor paulista”. Pois é. Graças ao Fluminense, o tricolor original, times de três cores como Grêmio, Bahia, Fortaleza e São Paulo – entre tantos que copiaram nossa camisa – necessitam de qualificação adicional: tricolor paulista, tricolor gaúcho, etc.
Antes que eu me esqueça: comparar a Máquina com o badalado Flamengo de Zico & companhia chega a ser constrangedor para os flamengos. Basta dizer que o nosso camisa dez era o campeoníssimo Rivelino, que como Didi, Castilho, Carlos Alberto, Félix, Paulo César Caju, Gérson, Branco e Romário – jogadores que também envergaram o manto verde, branco e grená –, viveu a grandeza da conquista de uma Copa do Mundo. Tivesse eu escolhido qualquer período da história do Fluminense – da fundação do futebol carioca ao épico de agonia e glória da terceira divisão, da Taça Olímpica ao milagre de 2009, do desespero de 2013 aos dois títulos Brasileiros conquistados nesta década –, ainda sim a conclusão seria tão óbvia quanto ululante: o Tricolor é o maior de todos.
Porque o Fluminense – e só o Fluminense – pode ser, a um só tempo, o menor e o maior de todos, o mais triste e o mais jubiloso, o mais agônico e o mais glorioso, o mais humano e o mais divino dos clubes do planeta.