Não sou propriamente um schopenhaueriano. Ôps, ôps! Tá bom, cacete, vocês estão certos: ninguém tem a obrigação de ter lido Schopenhauer, nem eu, que escrevo estas linhas arbitrariamente, dando-lhes o destino que minhas caraminholas entenderem. Se li Schopenhauer, devo tê-lo feito por morbidez, por recusar a alegria grotesca que nutre os felizes orgânicos em sua idiotice crônica. Reduzindo porcamente: o bom e velho Shop está para a depressão como o Galvão Bueno para a euforia. A regra é clara: tirássemos uma foto da afetação rocambolesca do Galvão, e seu negativo retrataria o pensamento shopenhaueriano. De qualquer forma, mal não faz falar de filósofos.

Amo a vida, mas só me foi possível amá-la ao aceitá-la patética. Incluo-me entre os que pensam ser a vida o exercício penoso de preencher a sucessão de momentos irrelevantes interpostos entre o levantar-se e o deitar-se. É essa busca lancinante que cerca de tragédia todas as nossas decisões diárias. Destilada ou fermentada? Carboidratos ou proteínas? Usar ou não Viagra? BRT ou metrô? Barra de cereal ou pizza? Mando ou não internauta babaca ir à merda? A banalidade de nossa tragédia existencial nos torna escravos de um Deus misericordioso, e se a fizermos séria então, chega a ser constrangedor.

 
 
 

Pois em 2002 tomei uma decisão carregada dessa tragédia banal que move as vidas das gentes: ir a todos os jogos do Fluminense. Morando à época em Friburgo, ir aos jogos do Fluminense no Maracanã já representaria um imenso esforço, com aqueles jogos em horários de naiteclubes, a nos fazer chegar em casa entre o fim do Intercine e o bom-dia do pastor-estrela. Ir ao Maraca já compunha minha rotina, mas a decisão ia além: ir a simplesmente todos os jogos do Fluminense onde o Fluminense jogasse neste Brasil de anjos e demônios. Tomei a decisão inundado de alegria, o que me livrou do constrangimento de fazê-la séria feito meta de regimes e palestras motivacionais.

2002 começou com o Fluminense renovando o contrato do blasê Oswaldo de Oliveira por 350 pilas. Um escárnio para os números daquele tempo. 350 contos! Fizemos um RioSampa morno, caindo do beiral de nossa última possibilidade de classificação entre os quatro finalistas pelo bicão do Marcos Senna a um minuto do fim, no inferno do Anacleto. O Marcos Senna chutou exatamente de onde deveria estar o Fabinho, expulso cinco minutos antes. Paralelamente ao RioSampa, arrastava-se o Caixão 2002, um estadual meia-bomba, em que os grandes clubes se fizeram representar por times reservas. O mistão do Flu chegou às finais, quando, apercebendo-se que o tricolor colaria na flâmula mais um estadual, o Vasco e o Flamengo escalaram todos seus titulares. Mas aí já era tarde demais. Fomos campeões em nosso centenário, fato único entre os grandes do Rio. No estadual fomos comandados pelo bravo Waldemar, até a chegada do Robertinho, que substituiu o Oswaldinho. Robertinho não durou muito: sucumbiu à inversão da dinâmica do somatório. Mas antes de encomendar a passagem do féretro do Pequeno Roberto, o Fluminense surpreendeu o tricolor mais otimista, ao anunciar a contratação nada mais nada menos do maior centroavante da história recente do futebol mundial: Romário. Ainda que a bordo de suspeitáveis 36 anos, Romário era Romário, um artilheiro implacável, frio, dono de um carisma messiânico. Como Lázaro, ressuscitamos de nossa história batendo o sujo da roupa. O contrapeso arrematava a esperança: Beto, aquele Beto acompanhado do apelido destilado. Com Romário e Beto não houve um tricolor sequer que não babasse de felicidade e corresse pelas ruas a anunciar a chegada à Terra Prometida com direito à passaporte diplomático e translado em frescão. Romário estreou num Maracanã com 80 mil tricolores em estado de graça. Goleamos impiedosamente o Cruzeiro – 5 x 2, com direito a gol arquetípico do Baixinho. Se minha decisão de acompanhar o Fluminense Brasil afora era fato liquidado, com o Baixinho, passava então a ter com ela devoção fundamentalista.

Correr o Brasil na companhia de tricolores que comigo viajavam e tricolores que por onde estivéssemos fomos encontrando encerrou uma experiência fantástica. Gente boa no atacado e no varejo, paixão transbordando de churrasco, cachaça, caruru, cerveja, caranguejo, estanerréguer, feijão tropeiro, cachaça, tacacá e o escambau. Onde não tínhamos amigos, o fizemos. Levei de cada lugar uma saudade gostosa, e repertório para papos e mais papos tricolores na serra, na chuva, na rua, na fazenda, na praia, no teclado. Onde fosse. Mas hoje vou cuidar de um episódio fermentado por uma alegre conspiração do destino, pois inclui duas das almas tricolores que mais amo em sua generosidade e dação afetiva: Caio Barbosa e Ida. Vamos fazer o seguinte: para não embolar, vamos mudar de parágrafo. Assim a história vai seguir tranquila, sem lhe ter a fungar nas costas um tijolo de linhas contínuas.

Caio e Ida subiram a serra na sexta à noite, de onde partiríamos domingo para a travessia do Rubicão da Dutra, antes de tomarmos o Pacaembu e anunciarmos ao mundo que Roma tinha um novo César, que por sinal não jogaria aquele jogo. O jogo era o da entrada oficial em vigor do Estatuto do Torcedor. Fluminense e Corinthians. Nós, patinando ali pelo oitavo lugar, o Corinthians do Parreira movimentando-se pendularmente entre o primeiro e o segundo lugares. Sábado pela manhã, o Caio liga para a redação do Lance! e confirma a escalação do Fluminense, tragando pelo telefone um exocet para a calma do sótão onde estávamos: jogaríamos no 3-5-2 com Zé Carlos, Augusto 32 e Andrei na zaga. Chegamos a considerar a hipótese de não ir, agregando quorum ao bravo grupo de tricolores de Friburgo que assistiam aos peipervius no bar Choppito, o único do Brasil com chopp crocante. Resistimos bravamente. Domingo, às seis da matina, partiríamos para tomar o planalto dos bárbaros. Não conseguimos, no entanto, esperar pelo domingo. Sábado à noite bateu a ansiedade pré-jogo e pegamos estrada. Foi um corre-corre, um tal de ligar para hotel, especular cidades no caminho, possíveis pontos de parada. Estávamos tranquilos, afinal era a Dutra, a rodovia que liga as duas maiores cidades da América do Sul, seria fácil encontrar um lugar seguro e confortável para descansar, ainda que os três filhos da época – hoje são quatro – fossem conosco. Fizemos o cálculo e como escala escolhemos Penedo, um enclave finlandês incrustado nas alturas médias da serra de Itatiaia. Primeira e segunda tentativas: hotel lotado, impossível arrumar lugar. Na terceira, melhor sorte. Havia um grande quarto disponível, um quarto tipo familiar, que poderia nos acomodar em nossa demanda prolífica: quatro adultos e três crianças. Tudo arranjado, pé na estrada.

Passaram rápidos os 280 quilômetros que separam Friburgo de Penedo. A criançada que começara a viagem excitada já dormia fazia umas duas horas, e nós, na adrenalina típica que marca as viagens “a serviço” do torcedor apaixonado, conversávamos e conversávamos, repassando a campanha, prevendo o resultado e a nova posição na tabela, imaginando os oito finalistas. Chegando a Penedo bateu o cansaço, abruptamente. Uma e meia da manhã. Não foi difícil encontrar o hotel. Um recepcionista sonolento conferiu sonolentamente nossa reserva. Não havia reserva. Ao susto sucedeu um alívio: não havia reserva, mas havia um tal quarto familiar vago, à nossa disposição como o chinelo que mais prezamos.

Já no quarto, exaustos, ouvimos um bater forte na porta: “Peraí, peraí! Todos vocês vão ficar neste quarto? Os dois casais e as crianças?”. Respondemos já nervosos com o que o tom da pergunta poderia conter de ameaça: “Claro, né!?”. “Não vai dar, é contra norma do hotel”, disse-nos firme, embora ainda sonolento o funcionário. E completou: “Vocês vão ter que falar com o dono do hotel”. Contra-argumentei: “Pois fique sabendo que foi justamente com ele que falamos, e ele foi claro em nos dizer que poderíamos ficar todos neste quarto; e ainda fechou o preço”. “Não posso fazer nada”, sentenciou. “E onde fica a porra do dono do hotel?”, Caio já nervoso. “Vou ligar pra ele; de repente vocês dão sorte de eu encontrá-lo em casa”. Fomos para a recepção do hotel, de onde o empata-foda tentou falar com a chefia. Necas. Talvez pudéssemos insistir, argumentar que estávamos cansados, viajando com crianças, que não era uma violação assim tão séria das regras do hotel, que éramos todos de família, etc. Mas não. Cedendo a um impulso tipicamente idiota, em vez de argumentar, optamos por ficar putos. Gritamos uma meia-dúzia de impropérios, lançando mão de um sonoro vai tomar no cu como verniz. E voltamos para a estrada convencidos que na Dutra lugar é que não ia faltar para nos hospedar às custas de nossos suados cobres. Esquecemo-nos, no entanto, de um pequeno detalhe: era sábado, dia planetário da fornicação. Em todos os motéis que íamos encontrando pelo caminho a mesma cena de libidos em fila esperando pela desova, o que era feito a bordo de amassos impublicáveis. Em um dos motéis em que havia apenas dois carros na espera cheguei a pensar em abordá-los para perguntar se iriam demorar muito, mas não achei prudente. E fomos assim de motel em motel até Queluz, onde paramos num posto Graal, para restaurar forças, decantar a tensão e comer umas besteiras.

Não sei se foi uma boa decisão.

Cansados, com as crianças espremidas entre os colos do Caio e da Ida, exauridos em nossa capacidade de apresentar solução para um drama que ameaçava se estender por toda a madrugada, madrugada que antecedia um jogo em uma terra que não era nossa e da qual precisávamos voltar no rastilho do jogo acabado, víamo-nos diante de um quadro que exigia desfecho imediato. Do balcão onde sorvíamos uma média com pão com manteiga, eu e Caio vimos uma banca de jornal na direção oposta à que paramos o carro, e que estranhamente parecia estar aberta. Fomos checar e realmente estava aberta. Impelido por um impulso corporativo, o jornalista Caio encontrou no jornaleiro a saída para nossa pequena tragédia: “E aí, amigo, qual o seu nome?”. “Walter”, respondeu simpaticamente o jornaleiro, e completando: “Cês são do Rio?”. “Somos, irmão. Estamos desesperados por um lugar ao menos razoável pra dormir; saímos do Rio e o hotel que tínhamos feito reserva furou conosco. Tem três crianças com a gente, estamos exaustos, irmão, precisamos de um lugar pra descansar”. Caio foi convincente. “Seus problemas acabaram, amigos. O que é isso? Cês tão na estrada esse tempo todo e não encontraram um lugar pra dormir? Não sei se vocês são do tipo metido a besta, me desculpem, com frescura de lugar de luxo, mas lugar bom nesta estrada tem e tem muito. Aqui mesmo pertinho, 12 quilômetros na direção de São Paulo, tem um hotelzinho ajeitado. Podem ir que é tranquilo. E tem mais: é tudo calmo, a gente acorda com o cantar do galo e com a música dos passarinhos”. Caio acreditou prontamente: “Valeu, irmão, você nos salvou. Beto, vambora que tá tudo certo”.

Exatamente ao cabo dos doze quilômetros apontados pelo Walter, havia à direita uma minúscula embora visível placa: “Hotel Estradeiro”. Era o tal hotel indicado pelo jornaleiro. Cerca de 100 metros de chão de terra e chegamos ao Estradeiro. À noite todos os gatos são pardos, mas aquele gato que eu vi às escuras parecia ainda mais pardo que o gato da superstição. A aparência do “hotel” era um misto de Castelo de Greyskoll com Projeto Cingapura. Na recepção um ressaquento atendente foi estendendo a mão com as chaves dos dois quartos assim que lhe falamos de nossa demanda. Nada mais se falou. Pegamos as chaves e fomos por um soturno corredor à cata de nossos salvadores aposentos. O quarto que vi atrás da porta que abriu rangendo era, apesar do atenuante de nosso cansaço, assombroso. Paredes cinzas, cortinas maltrapilhas, uma geladeira à guisa de armário, pois desligada, guardava uma garrafa de água cujo plástico leitoso indicava ter sido fabricada tão logo descobriram esse derivado de petróleo. Aproximando-me da cama, procurei consolo no edredom fofão, mas logo descobri que era o colchão”. Tratamos de dormir. Menos eu. Tão logo deitei naquela máquina de ranger que se dizia cama sussurrei um boa-noite às crianças, cuja não-resposta denunciava que já dormiam. Preparei-me para fazer o mesmo quando ouvi um canto de galo. Lembrei-me do Walter com sua observação sobre galos e passarinhos. Benzi-me e entrara em alfa quando o galo cantou pela segunda vez. Arrumei-me de novo na “cama” e já esperava o conforto do sono quando o galo, agora mais próximo, cantou pela terceira vez. A partir dali, de dois em dois minutos, o galo cantava, e cantava cada vez mais forte. No quinto cocoricar, tudo o que poderia soar bucólico virou ódio irracional. O sacana do galo não se contentou naquela noite em fazer o que fazem os galos em sua tarefa madrugadeira. Não, aquele filho-da-puta tinha um objetivo mais claro: não me deixar dormir. Levantei-me da cama de faquir e tentei abrir a janela lateral que se interpunha entre mim e o maldito galo. A janela estava emperrada, e me restou conferir o basculante do banheiro, encaixado na extensão da parede da janela. O basculante não basculava, deixando-me uma nesga de vista para o muro que separava o hotel do quintal do vizinho. No pequeno pedaço do muro que o basculante me permitia ver estava o galináceo olhando para aquele pedaço de cara que era a minha cara no basculante que não basculava. Olhou-me com nítida ironia. Roçou no muro a espora direita e cantou bem forte, como a dizer: “Não vai dormir não, seu babaca”. Tateei pelo banheiro escuro em busca de algo que pudesse se revelar um projétil cujo tamanho o credenciasse à tarefa simultânea de passar pelo basculante e ao mesmo tempo atingir aquele galo escroto. Só encontrei o sabonete. Fiquei em dúvida. Se jogasse pelo basculante o sabonete no galo, ficaria sem ter como tomar um banho decente horas depois. E ainda havia o risco de não acertá-lo. Surpreendentemente, o galo pareceu-me conceder uma trégua, e voltei para a cama convencido que meu olhar furioso por entre as básculas havia atemorizado o galo a ponto de fazê-lo pensar duas vezes antes de desembainhar seu canto estridente. Mal me reajeitei e fiz que ia dormir, e o galo cantou com todas as suas forças, ressoando seu canto no quarto como um alarme de bombardeio. Voltei ao banheiro me dirigi a ele sem rodeios, gritando sussurradamente: “Cala a boca, seu merda, me deixa dormir”. Terminei a frase com o arremesso do sabonete, cuja trajetória ideal estudei enquanto gritava os sussurros. O sabonete subiu, subiu, e caiu a um metro do galo, que voltou a cantar, já agora vitoriosamente. Revirei a mala e de lá retirei as Havaianas brancas de que tanto gostava. De posse delas, voltei ao posto de combate. Joguei em primeiro lugar o pé esquerdo, depois o direito, e o que consegui foi apenas ver minhas havaianas preferidas ultrapassarem o muro em direção ao nunca mais.

Lá pelas cinco da manhã – o galo me olhando do muro, e eu o olhando do basculante-, o garnisé safado pulou para o quintal não sem antes me deixar claro que havia logrado sua intenção. Cochilei por umas duas horas, tempo suficiente para que fosse acordado pelas crianças e que iniciássemos as providências de enfrentamento do domingo que se apresentava longo. Antes de deixar o hotel e pegar a estrada, fiz questão de anotar o endereço da espelunca e educadamente perguntar ao ainda mais ressaqueado atendente o nome do dono do hotel – Expedito – e o nome do dono do sítio – não sabia – cujo muro o separava do hotel à esquerda. Tinha uma ideia em mente.

Chegamos ao Pacaembu em festa. O jogo que marcava a vigência oficial do Estatuto do Torcedor deveria servir de exemplo para todos os jogos. Policiais aos montes, recepcionistas da federação orientando o torcedor e tirando suas dúvidas, sinalização vertical clara, organização em todos os passos – do estacionamento à entrada no estádio. O Fluminense surpreendeu. Impôs-se, fez uma ótima partida e ganhamos de 2 x 0, com gols de Roni e Andrei, de falta. Augusto 32 e Zé Carlos jogaram um bolão, acreditem. Antes do jogo, a Gaviões nos visitou e chegou a levar brindes para a Young. Tudo muito civilizado. Nos últimos quinze minutos, a sempre simpática Sampaflu liderou o coro; “Não é mole, não, o Parreira é carioca e tricolor de coração”. Éramos duzentos calando vinte mil. O Edegard, que fora para São Paulo de avião, acompanhado de seu caçula Gustavo, repetia e repetia: “Vamos longe, Beto, este ano vamos longe”.

A viagem de volta foi leve e divertida como são as viagens que sucedem as vitórias épicas. Rimos, cantamos, falamos ao celular com tricolores de todo o Brasil, deliramos com os comentários aborrecidos da imprensa paulista. Quando percebemos, estávamos chegando à Estrada de Lumiar. Dormimos o sono dos heróis. Na manhã de segunda, Caio e Ida muito cedinho desceram a serra, voltando ao mundo real dos carnês e virações do qual se licenciaram por cerca de gostosas 60 horas. Despedi-me deles e fui tratar de dar cabo daquela ideia que vinha me obsedando desde a saída daquele pardieiro na Dutra.

Cheguei à Rações Mury, uma simpática loja de rações pertinho aqui da casa onde morava, e fui logo perguntando ao Alemão: “Cara, eu quero a melhor ração que você tiver para aves de médio porte. A melhor, sem concessões de preço”. Ele nem pestanejou: “Tenho aqui uma que faz galo garnisé cobrir ema. É americana, Beto. É cara, mas é o bicho”. “Manda essa. Três quilos”, recomendando-lhe acondicioná-la na embalagem com capricho, bem apertadinha. De lá fui aos Correios e pedi ao tricolor Carlinhos que me escolhesse uma embalagem de SEDEX que comportasse o pacote que tinha em mão. Chequei o endereço, e preenchi cuidadosamente o formulário, para que não houvesse risco de a encomenda não chegar ao seu destino. Com o pacote seguiu um bilhete. “Caro Expedito. Estive hospedado com minha família em seu hotel no último fim-de-semana. Agradeceria se pudesse fazer chegar às mãos de seu vizinho à esquerda esta encomenda. Beto Sales”.

Colado à encomenda, um cartão escondia um segundo bilhete, este destinado ao dono do sítio, e que passo a transcrever:

“Prezado senhor,

Na embalagem anexa tem três quilos da melhor ração do mundo para galináceos. Peço-lhe que alimente por cinco dias o simpático galo garnisé que costuma anunciar as manhãs de cima do muro que separa seu sítio do Hotel Estradeiro. O bucolismo emprestado pelo lindo canto do galináceo às manhãs de Queluz me fez lembrar de minhas manhãs friburguenses, onde recebo o dia pelo coral multifacetado da natureza. Depois dos cinco dias de filé mignon, antes de voltar a alimentá-lo com a ração vagabunda que o senhor usa em seu sítio, faça-me uma pequena gentileza: grite no ouvido daquele corintiano filho-da-puta com todas as suas forças: “Não adiantou porra nenhuma, seu galo escroto. 2 x 0! 2 x 0! Não é mole, não, o Parreira é carioca e tricolor de coração”.

Saí dos Correios outro homem, embora não de todo despreocupado de minha sanidade mental.