Obviamente, eu já tinha ouvido Belchior. No festival da Tupy. Toco violão desde garoto, e “Hora do Almoço” dava sustança a repertório de qualquer roda de viola quando ainda havia roda de viola. Muitas vezes nos desbuns depois das passeatas em que, muito jovens, marcávamos ponto com gritos de ordem e bolas de gude para fazer derrapar os cavalos dos meganhas. Corríamos em busca da liberdade como os ratos atrás da flauta mágica.
Os lazaristas agarraram o sentimento do mundo com a Bíblia na mão direita e a indignação na mão esquerda, e nos empurravam para as ruas onde aprendíamos na porrada que havia um mundo inquieto além do ambiente higienizado do Colégio São Vicente. Na volta cantávamos Chico, Vandré, Gonzaguinha pré-melação, Caetano, Gil e, quando vez, “Hora do Almoço”. O mesmo repertório que embalava nossas madrugadas psicodélicas em Boca do Mato, volta e meia fumando cigarro com Melhoral, encontrando dor de cabeça onde pensávamos morar a loucura. Ali, agregávamos Pink Floyd à lista. E bebíamos muito. Conhaque Dreher, Calcinha de Nylon, Cinzano traçado com branquinha, e, rarissimamente, Old Eight, um luxo naqueles tempos. Fosse tal fosse, falávamos e falávamos de futebol, com uma ou outra concessão a citações dos clichês comunas da época. Transitávamos de Danton a Rivelino com desembaraço. Não passou muito tempo e já contava, variando do berço ao colo, com a companhia recém-chegada de meu primeiro filho. Somei aosprazeres que não deixei as preocupações que atracavam no cais de um casamento recente sob os auspícios da presença estridente de uma vida pedindo amor e cuidado.
Rato de lojas de disco, cumpria religiosamente o caminho de Santiago, que ia da Billboard a Modern Sound, na Santa Clara, em Copa. Vi um dia o disco na vitrine e não resisti. A capa, em azul e vermelho berrantes, chamava atenção pelo semblante inestranho em traços empastelados. A capa pulava da vitrine a colher o mundo pela certeza de que o mundo reconheceria estar ali um sopro de magia que lhe iria virar a página. Pelo menos a do meu mundo, que num é pouco de guarda. O título, “Alucinação”, bateu firme em quem andou às voltas com convulsões hipoglicêmicas ao pisar os primeiros passos neste terrão vadio de Deus. O disco era do Belchior, e os jornais já andavam falando maravilhas dele, com a cumplicidade feérica da Elis. Comprei-o sofregamente e corri para casa, a alguns quarteirões dali, com a impressão de que estava perdendo o pulso da História a cada minuto perdido por não ter ouvido o que escorreria daquele vinil para mudar minha vida com a intensidade de uma aparição bíblica. Ouvi “Rapaz Latino Americano”. Ouvi a ducaralho “A Palo Seco”, até chapar em transe ao ser ungido pelos sons e asperezas de “Como nossos pais”. Coisas da idade.
Aos vinte e um anos, senti-me lançado no meio de uma cadeia geracional, onde me cabia um papel que sequer dava conta de entender. Meu filho com dias de vida e meu pai separado de mim por uma eternidade etária. Orgulhava-me do velho e me dava bem com ele, jeitão baiano, a respeitar minha independência e me dando corda para que quebrasse a cara, sem saber que o tinha à espreita.
Foi com ele que fui à banca de jornal do Salvatore e chorei no pacotinho a figura carimbada do Telê, que me lançou nos braços dessa maravilhosa aventura de ser tricolor. Isso bastaria, mas fomos muito mais. A letra é perigosamente foda para um pai recém-saído da adolescência, a deitar sabença pela via larga da idiotice: “Nossos ídolos ainda são os mesmos, e as aparências não enganam, não”. Prossegue por mais: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
Olhei para o berço e vi simultaneamente três gerações no corpo frágil daquele neném. Eu, meu pai e meu filho recém-nascido tínhamos por encanto a mesma idade, mergulhados em um rio caudaloso de amor e perplexidade. A partir dali, resolvi mais que amar meu pai, ganhar-lhe a confiança e a amizade, o que consegui, ainda que faltando tempo de pouco para que ele me deixasse. Hoje faz exatamente nove anos. Dia dos pais.
Edmund Wilson, um de meus melhores gostares da geração maldita que virou, em meio a porres monumentais, ponta-cabeça a literatura norte-americana, ao relatar em suas memórias o sentimento que lhe infestara ao perder seu pai, explicou-o pela sensação de que nada mais o separava da morte. Os pais são muros, voltimeia de concreto, vez por onde de bambu passado, mas fronteiras nítidas para o mundo do fim.
Quando crescerem meus filhos mais um pouco, vou desenferrujar os dedos tocando para eles “Como nossos pais”. Tô a fim de lhes contar como vivi e tudo o que aconteceu comigo. Afinal, viver é melhor que sonhar.
A meu velho, a saudade.