Começo pelo que não seria necessário, mas se torna, pela temperatura do assunto, conveniente: as opiniões contidas nesta coluna refletem unicamente a minha visão pessoal dos fatos. Não fosse assim e aqui sequer estaria escrevendo.
Não foram poucos os movimentos de torcedores do Fluminense que surgiram no rastro da década perdida, os anos 90 do século passado. O choque dos tempos insanos foi muito mais intenso por romper com a tradição vitoriosa de um clube com um impressionante nível histórico de desempenho. No período anterior ao da década da humilhação, o Fluminense, de 1969 a 1985 – 17 anos, ganhou simplesmente dois brasileiros e nove cariocas(à época, tão importante para nós quanto o Brasileiro). Encantamos o mundo com a Máquina e impingimos derrotas épicas ao projeto Fla-Zico da Globo, apesar da histeria midiática que o alimentava. O Flamengo servia sob medida ao Brasil do “eu te amo”, do “ninguém segura”, do “eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor”. Coube ao Fluminense estragar não de pouca vez a festa, desafinando o coral cívico dos felizes. Mantivemos-nos íntegros e imensos, com nossa autoestima nos píncaros, quando ainda se dizia píncaros.
Vieram os anos 90, e esmagados em nosso orgulho por uma tragédia que nos impôs as mais terríveis humilhações, unimo-nos no sofrimento para reerguer o Fluminense combalido pela negligência, incompetência e oceânica(ôps!) omissão. A torcida tricolor reagiu à barbárie dos irresponsáveis que se sucediam em sua patética impotência e tomou o Fluminense em suas mãos. Naquele momento de risco de descontinuidade institucional, a solidariedade emergiu, pela crise, de forma espontânea, pura como a aura de um casto. Mais que nunca provamos que a eternidade nasceu Fluminense. E nos provamos fortes.
Estimulados pelo acesso a uma incipiente internet, que sob o som irritante da conexão telefônica viabilizava a formação de grupos virtuais, os tricolores se descobriram pela troca diária de suas angústias e apreensões. Amizades se fizeram, relações se consolidaram, convergíamos todos para uma família-síntese de nossas diversidades. Fechamo-nos, assim como nas famílias, na defesa de nossa pauta familiar, o Fluminense. Foi bonita a festa, pá, a volúpia reconstrutiva. Mas havia riscos, sempre os há.
Embora a história se repita como farsa, muitas de suas circunstâncias se repetem por humanas. Na dor, somos solidários; no êxito, babamos sonrisais de ressentimento dos que se apropriam casuisticamente do êxito que deveria ser tão democrático quanto a dor. E assim os grupos que nasceram unidos por um propósito se dividiram na expectativa de exercício do mesmo poder que contestávamos. Muitos se organizaram para num esforço elogiável promover uma associação em massa, que pudesse mexer na configuração do colégio eleitoral fechado que decidia os destinos de um clube de massa. Não demorou muito para que os que se apropriaram de forma competente dos meios de tomada do poder condominial repetissem a velha fórmula do poder exercido de dentro pra dentro, com os mesmos velhos atores, os proverbiais mandarins de província, os mesmos métodos bolorentos, o atraso tornando roto o tecido entrelaçado da véspera.
Outros tricolores se mobilizaram em centenas para criar a primeira ONG do torcedor no Brasil após a promulgação do Estatuto que passou a regular nossas relações com os clubes e poderes constituídos. Foi bonito. A Fluturo reuniu mil entusiasmados torcedores que puderam em muito breve tempo chegar a vitórias históricas, como, por exemplo, a imposição de abertura das contas do clube. Sentimos que estávamos no caminho certo quando nos reunimos com o promotor de defesa do consumidor, e o Fluminense enviou cinco advogados para a reunião. Incomodávamos. Tive a honra de presidir a organização, mas só a assumi com o compromisso de deixar a presidência ao final do primeiro ano. E assim o fiz, deixando a direção da Fluturo nas mãos competentes do Daniel Hora do Paço. A Fluturo acreditava que as mudanças estruturais por que o Fluminense precisava passar só se tornariam possíveis num processo de fora para dentro, do torcedor para o clube, na esteira do novo modelo de negócios que se impunha ao futebol profissional. Daí minha alegria ao tomar conhecimento da importantíssima vitória da Flusócio em estender ao sócio-futebol o direito a escolher o presidente do Fluminense. Era uma belo começo, mas o tempo foi provando que para se manter no poder – ainda que acreditassem que só assim as reformas necessárias seriam implementadas – muitos dos mesmos tricolores que criticavam os absurdos do sistema fechado cederam a ele. A Fluturo se desmobilizou, e muitos de seus fundadores aderiram à Flusócio. E a Flusócio se fechou, quando deveria ter aberto canais permanentes de comunicação com o torcedor, e não optar por caçar críticos com pit-bulls raivosos em redes sociais. Fecharam-se e se distanciaram da realidade, tornaram-se o que combatiam. Sei que é difícil para muitos resistir ao simbolismo inebriante de toda forma de poder. Participar de reunião de conselho – o que para mim seria um sacrifício monumental -; poder dizer ao vizinho ou ao cunhado que ontem conversou com o presidente e foi com ele sincero, ainda que sinceridade não seja a regra de conduta dos que conversam com presidentes; conseguir cortesias, camisas assinadas; ver o filhinho entrar em campo com os craques. Se sentir importante pela desimportância acachapante.
Sou torcedor, não me agrada o convescote conspirador do pequeno poder, não gosto de clube, nem de condomínio. Não aceito que uma instituição com a dimensão imensa do Fluminense possa ser gerida pela aliança de grupos nanicos de um clube de bairro. Fui sócio do Fluminense durante boa parte de minha infância e adolescência. Me desliguei do clube por não gostar de clubes, por clubes me aborrecerem com sua rotina amesquinhadora, pela expressão simbólica de vaidades anãs. Voltei há quatro anos a ser sócio-contribuinte e também sócio-futebol. Esforcei-me em acreditar. Mas logo percebi que a banda tocava outra música. Só fui ao clube uma vez: para votar contra o que eu já considerava um caminho sem volta. Agora, tão logo passe a eleição, voltarei ao clube para de lá me desassociar. Continuarei sócio-futebol, e lutando para que as eleições que vierem reflitam cada vez mais a vontade dos milhões de tricolores que mantêm viva a chama para muito além dos muros do condomínio. Para as eleições que se aproximam, não irei me ausentar nem me abster, votarei segundo o único parâmetro que me diz respeito como torcedor: a performance no futebol. E acrescento: o compromisso com a gestão democrática.
Não votarei no Abad, apesar de respeitá-lo em sua pretensão e até mesmo ter dele uma boa impressão. Já não votaria pelo impedimento em exercer na plenitude a presidência, mas não votarei principalmente pelo vínculo com a atual gestão, que nos levou a desempenhos patéticos, se desfez de ídolos, montou um elenco caro e invertebrado, não se empenhou em estender o direito de voto aos sócios não presentes, e se mostrou fraca e insegura na defesa dos interesses institucionais do Fluminense. A adesão constrangida do Cacá, um candidato em que considerei votar, foi a pá de cal. Coisa feia. Não votarei no Celso Barros. Sou grato a ele, ainda que pondo em risco sua reputação como gestor de uma grande cooperativa, por nos permitir viver e sonhar com um Fluminense temido, respeitado, imenso, protagonista. Mas entendo que com ele podem se aprofundar as práticas fechadas de gestão e decisão no clube, que com ele se obstrua o caminho para a construção democrática do Fluminense que sonho, com total transparência e participação de sua torcida fidelizada por adesão a programas corporativos. Vou de Mário e Tenório. Não que eu me empolgue com a chapa, nem que esteja, seguindo uma prática que vem se tornando comum no Brasil, votando por exclusão. Voto por alguns motivos. Voto pela gratidão ao Tenório pela arrancada épica de 2009, por reconhecer no Mário alguém que se empenhou a defender com gana nossos interesses quando a presidência se fez omissa. Voto por homenagem ao Parreira, a quem todo tricolor bom caráter tem o dever de gratidão. A bem da verdade, não reconheço no Parreira o perfil ideal para modernizar profissionalmente o futebol do Fluminense, e nem acho que ele tenha sido escolhido para esse fim, mas sua presença dá tônus ao corpo executivo que cuidará de nossa principal atividade. Vejo, principalmente, no Mário e Tenório, em ambos, o contraponto de personalidade necessário para superar os seis anos de volatilidade, insegurança, tibieza, marcas da gestão que agora se encerra. Obviamente, desejo total sucesso a quem sair vitorioso do pleito, embora considere o processo em si falho de representatividade, pela omissão criminosa da atual gestão em não estender ao sócio ausente o direito de votar pela internet. Torcedor compulsivo, serei implacável com qualquer um deles, inclusive com os que escolhi. A eles só peço que entendam o Fluminense como eu entendo.
E o que é, para mim, o meu, o nosso Fluminense?
Nascido do sonho de dezoito apóstolos que desconheciam estar fundando as bases de uma liturgia eterna, o Fluminense tornou-se a mais importante instituição esportiva brasileira do século 20. Sua influência se espalhou por todo o mundo, produzindo mitos e lendas que inundam a crônica do futebol mundial das mais lindas histórias. Mas não é só.
Nestes mais de cem anos o menino Fluminense sonha como sonham os meninos. Vê o mundo como um território a conquistar. Uma imensa floresta, imaculada, com pássaros que voam sobre gaiolas destroçadas. Seu exército de apaixonados doa-se a manter em seus corações o viço de uma fé inabalável, provada nos mais terríveis invernos e tempestades. Por fé, carrega peso e leveza. Encontram-se e desencontram-se os que o amam, embora jamais deixem de estar disponíveis, abertos. Há uma orquestração tácita de espíritos generosos nessa dança de paixão e entrega. Seguidores de um Deus doméstico, descobrem a maior dentre todas as felicidades nessa crença indestrutível. Não temem como Prometeu ser amarrados a penhascos por ter revelado aos homens os segredos de seus deuses, que, ensandecidos, lhe enviariam águias para fustigá-los. Nossos deuses são um só, ainda que em três cores.
O moleque Fluminense pulsa nas camas das prostitutas, e aponta para o céu quando se veem mortas as esperanças das palafitas. Pátria dos proscritos e lar dos escolhidos. Esfinge e óbvio. Tantas vezes volúpia, nunca paz inexpressiva. Mora cuidadoso na consciência dos bêbados e embriaga de delírios os abstêmios. Indivizível, por ser a Verdade. Um amor que não refuga diante de preconceitos e transforma o todo em um. Indecorosos e decorosos. Chuta o balde do escárnio e cutuca com vara curta a arrogância dos babacas. O Fluminense é um lugar. Que não cabe onde cabem os lugares, com suas geometrias toscas e banais. Um número que não se enquadra nos tratados óbvios de pares e ímpares. Um grau visceralmente aumentativo.
O menino Fluminense renasce todos os dias, grávido de emoções afloradas. Em cada quarto de maternidade onde na porta há pendurado um símbolo tricolor que lembre estar ali vindo ao mundo mais um continuador. Nas mesas de bar onde corações e discursos inflamados ponteiam de lágrimas e gargalhadas a explosão de uma paixão que grita em decibéis tribais. Em cada lábio trêmulo e olhar rútilo que ressuscitem, por obra e graça de um amor que não cobra, o bom, velho e imortal Nelson Rodrigues. Na lembrança de um gol do Manfrini, do Assis, do Rivelino; dos gols que não vimos, mas imaginamos. Das escalações mentais – sempre irretocáveis – que levamos para a cama à guisa de atalhar o sono.
O Fluminense vive porque vive em cada um de nós um teimoso Peter Pan, um coração indomável, uma paixão avassaladora e terna. O Fluminense moleque quer jogar bola em nossos sonhos. Lá, ele nos abraça e compreende. Nos aceita como somos. E nós o amamos plenamente. Ele nada nos pergunta. Nós não lhe duvidamos.
A ecologia é sábia não por ser justa ou certa, mas por saber que o que está em risco não é o planeta, é o homem. A ecologia institucional do Fluminense também sabe que o está em risco não é o Fluminense, posto que eterno, mas sim nós, os que vivemos do seu oxigênio.
Boa sorte ao vencedor.