Arte: Felipe Caldara

Meu pai me entregou a branca.

– vai dar sorte, vista essa.

 
 
 

E então descemos três lances de escadas até a garagem. Entramos na velha Caravan bege de estofado marrom.

Não pegava. Algum problema na ignição. Ou na bomba de combustível. O velho tirou a camisa e chupou um pouco de gasolina de alguma borracha desgastada. Vi por um vão entre o para-brisa e o capô.

Pegou, mas lembro dele ter dito algo do tipo “espero que não enguice”. Ganhamos a rua, rádio ligado, o domingo se abria nas ruas de Copacabana, no caminho pro Maracanã.

Eu tinha sete anos – faz tempo pra cacete – mas ainda sou capaz de sentir o cheiro das cadeiras azuis do velho estádio. Chegamos cedo, tomamos nossa Coca-Cola e assistimos as entradas em campo de Fluminense e Vasco.

Eu estava uma pilha. Era minha primeira decisão no Maracanã. Nas mãos, carregava uma bandeira do Fluminense, presente de meu avô, e a mordia sem parar, consumido por um nervosismo que mais de quarenta anos depois ainda não consigo explicar.

Gol do Vasco. De onde estava, pareceu olímpico. Não éramos favoritos. Ao contrário. Tínhamos um time de garotos.

Veio o segundo tempo e com ele fui apresentado pela primeira vez a um time campeão.

Cada bola era desejada por nossos jogadores (todos de branco, como eu) e o que não se resolvia na técnica, resolvia-se na vontade. O 1×1 veio de um cruzamento. A bola sobrou pro Cláudio Adão que bateu por baixo do goleiro.

Eu já não entendia nada de futebol, mas sabia que não havia nada que tirasse do Fluminense aquela taça.

Pouco antes da disputa de pênaltis olhei pro lado e vi meu pai eufórico, cantando “a bênção João de Deus”. Nossa torcida inaugurava ali essa tradição que dura até hoje.

E, em pé nas cadeiras, vimos nossos jogadores botando as bolas na rede, enquanto o adversário empilhava pênaltis perdidos. Mario Jorge bateu o último.

Fluminense campeão. Choramos de alegria. Acho que eu pelo Fluminense e meu pai por ter me batizado tricolor.

Em 2008 liguei pro velho, já aposentado dos estádios.

– Vamos, pai. Eu quero muito estar do seu lado nessa final.

Já cansado, calça jeans super larga e camisa do Flu, se encontrou comigo duas da tarde, num bar perto do Maracanã.

Bebemos muito. Papo de embriaguez. E o agradeci milhões de vezes por tantos Maracanãs na infância.

Aos 16 minutos do segundo tempo fizemos o gol que nocauteou o adversário. 3×1. Vamos meter mais dois e vamos sair daqui campeões.

– Agora é matar esses caras, ele me disse.

Nosso treinador preferiu tirar o adversário das cordas. Botou meia, colocou zagueiro. O resto da história vocês sabem.

1980 e 2008 são exemplos de Fluminense. Esses recortes históricos pessoais eu tenho certeza que vocês também têm. Em outras datas, com outras companhias, em outros contextos.

Em 2023 eu sigo sem entender nada de futebol. E isso me gera nenhum incômodo. É uma opção. Uma deliberada opção de colocar o Fluminense acima do tecnicismo e da racionalidade. O futebol não me importa, o Fluminense, sim.

Esse time do Diniz me trouxe um reencontro. Me traz João de Deus, me reconecta com um tempo que não tem data, nem minutos.

Ele tem cheiro de cadeira azul do Maracanã, toque de pilastra chapiscada da rampa do Bellini, coreografia do Casal 20 e fica impregnado na pele como o querido pó de arroz.

Eu sorri esses dias lendo a galera no Twitter divagar sobre quem é mais time: esse de 23 ou a máquina de 76. Isso não é nem pergunta que se faça, nem tem resposta que se dê. Porque é tudo Fluminense. 76, 80, 2008…

Fluminense é Fluminense no furor da vitória e tão Fluminense na tragédia da derrota. O Fluminense me humanizou. A mim e provavelmente a maior parte de vocês.

Porque sabemos que nada por aqui vem de bandeja. Não tem o arcabouço midiático de alguns rivais, nem a perversa distribuição de renda que os beneficiam.

Nao tem o oba-oba Carnavalizado e travestido de imprensa, tampouco a simpatia de quem não seguiu o efeito manada e se manteve tricolor, mesmo diante de tanto percalço e dificuldade.

O Fluminense de 2010 e 2012 é o mesmo Fluminense que dançou com o diabo no fim da década de 90. Vocês compreendem?

Eu aprendi em 80, reafirmei em 2008 e tive um delicioso déjà vu há duas semanas, em um dos maiores Fla-Flus de todos os tempos:

Ou a gente vai buscar com confiança pra caralho, ou tiram da gente. Esse time do Diniz vai buscar com confiança pra caralho.

E no espaço tempo maluco que toca os torcedores do Fluminense eu me permito ter a certeza de que nesse mesmo Maracanã de 80, no final deste ano, estarei comemorando esse título que ninguém vai tirar da gente. Porque esse time do Diniz, muito mais que jogar mais que qualquer outro, quer mais que qualquer outro.

E quando isso acontece, amigos, mas quando acontece de verdade, a gente reconhece e já começa a projetar onde será o Chopp do pós título.

E na boa? Já caiu a ficha pra todo mundo. Como diz meu amigo Leonardo Bagno, a hora é de botar dois passarinhos nos ombros, abusar da humildade franciscana, mas deixar quente, rasgando o peito, esse sentimento de que ninguém tira essa da gente.

Se a torcida vibrar nessa confiança e o time seguir querendo pra caralho, ninguém tira, não.

Isso vai acontecer. O Fluminense será o campeão da Libertadores de 2023. Eu estarei lá pra viver isso. Se Deus quiser, ao lado do meu pai.