Pré-candidato à eleição do Fluminense, o advogado Ademar Arrais teve seu pedido pela implementação do voto-online do pleito tricolor indeferido pela Justiça. O juiz André Pinto, da 34ª Vara Cível do Rio de Janeiro, negou a solicitação, mas o autor da ação ainda irá recorrer da decisão.
Ao portal GE, Arrais discordou da decisão, que ainda o condenou a pagar R$ 1 mil dos custos e honorários advocatícios. Ele ainda lembrou que o voto on-line foi uma promessa de campanha do atual mandatário, Mário Bittencourt.
– Vamos recorrer da decisão na defesa dos interesses de todos os sócios do Fluminense, sobretudo os residentes fora do Rio de Janeiro. A implantação do voto on-line foi promessa de campanha do atual presidente em duas eleições, o estatuto do clube permite, a Lei Pelé determina a sua implantação e o clube realizou ofertas públicas de planos associativos cujo benefício é exatamente o direito de voto para presidente. É desonesto com o associado que contribuiu com o clube durante dois anos inviabilizar o seu direito adquirido de voto obrigando-o a vir ao Rio de Janeiro. Participei da aprovação da eleição direta para presidência do clube. Participei da criação da categoria de sócio futebol e do seu direito de voto. Continuarei defendendo os interesses do sócio, do torcedor e do próprio clube e por isso mesmo vamos recorrer. É uma vergonha o que o atual presidente está promovendo com medo de perder a eleição – disse Ademar Arrais.
Confira a íntegra da decisão do juiz:
“Controvertem as partes sobre a obrigação do réu na implementação do voto on-line, ao lado do voto presencial, para as próximas eleições do Clube, a serem realizadas em novembro deste ano.
Considerando que a matéria é exclusivamente de direito, passo a julgar antecipadamente a lide, com esteio no art. 355, I do CPC.
Inicialmente, afasto a preliminar de ilegitimidade ativa, já que o autor pretende ser candidato nas próximas eleições do clube e, assim, pretende ter todo colégio eleitoral apto a participar do pleito.
No mérito, pretende a parte autora a implementação de voto “online”, ao lado do voto presencial, ao argumento de violação do artigo 22, inciso IV da lei Pelé e artigo Estatuto do Clube réu.
Invoca ainda o art. 164 do Estatuto do Clube réu, afirmando existir expressa previsão do voto por sistema informatizado.
Na verdade, o artigo 164 do Estatuto do Clube, ao contrário do afirmado na exordial, não garante a votação de forma virtual, mas apenas menciona a possibilidade de sua implementação de acordo com seu regulamento geral e mediante aprovação de seu conselho deliberativo.
Assim dispõe o mencionado artigo 164 invocado: “O eleitor deve expressar seu voto assinalando os nomes dos candidatos de sua preferência, na cédula ou em sistema informatizado que venha a ser implementado no Clube, na forma disciplinada no Regulamento Geral e nos Regimentos competentes, aprovados pelo Conselho Deliberativo”
Nota-se que o estatuto não prevê a votação online como opção imediata de recolhimento de votos, mas sim estabelece um trâmite a ser seguido para sua implementação, e para tal, deve atender a forma disciplinada no Regulamento Geral e nos Regimentos Internos, e ainda ser aprovado pelo Conselho Deliberativo.
Dessa forma, resta claro que o que o Estatuto prevê é a possibilidade de se utilizar sistema informatizado que venha a ser implementado no Clube, depois, é claro, de deliberado pelo Conselho em Assembleia Geral, consubstanciado, inclusive, nas regras de organização genérica do art. 54, III e VI n/f do art. 61 do C.C..
A condição de prévia deliberação pelo conselho decorre da autonomia e independência das entidades de práticas desportivas, que gozam de capacidade de auto-administração.
A própria CF/88 tratou de prestigiar o esporte, reconhecendo o dever do Estado de dar-lhe apoio, traçando, para isso, princípios que devem ser seguidos para consecução desse objetivo. O primeiro deles é a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento, pontificado no inciso I do art. 217 da CF/88.
“Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;”
Nessa toada, o Texto Constitucional conferiu autonomia às entidades de práticas desportivas, quanto à sua organização e funcionamento, cabendo assim, ao Conselho Deliberativo do Clube Réu, deliberar sobre o tema.
Isso revela ainda que sequer caberia ao Poder Judiciário interferir na organização e funcionamento da entidade desportiva, sob pena de estar interferindo em Ato Interna Corporis e contrariando a CR/88 que, inclusive, assim determinou por meio dos §§1º e 2º do art. 217, impondo a precedência de um contencioso administrativo.
“Art. 217 (,,,)
(…)
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.”
Com isso, não cabe ao Poder Judiciário interferir no estatuto interno das associações desportivas, por constituir matéria interna corporis, sobretudo em temas que demandam deliberação qualificada do Conselho em Assembleia Geral. O exame da legalidade do pleito eleitoral do clube se restringe aos seus aspectos formais, que até então, não se demonstraram violados.
As normas estatutárias do clube obrigam aos seus associados já que aprovadas de acordo tramites do seu Estatuto.
Nesse giro, a imposição da vontade individual do autor via judicial interferiria diretamente na deliberação do clube, em afronta a proteção constitucional (art. 217) à liberdade associativa e autonomia de vontade.
Importante ainda observar que a implementação da modalidade de voto on line é de extrema complexidade, e demanda de estudo técnico de viabilidade, notadamente em razão da sensibilidade a fraudes, como se nota nas inúmeras notícias de falhas de segurança em sistemas informatizados de repartições públicas e privadas, o que seria inviável a se promover para as eleições de novembro deste ano, face a sua proximidade.
Por outro flanco, o fundamento da Lei Pelé não milita em favor da parte autora.
A Lei Pelé (Lei 9.615/98), que institui normas gerais sobre desporto, estabelece, dentre outras matérias, as regras de segurança dos processos eleitorais das entidades de práticas desportivas.
Em outubro de 2020 foi acrescentada redação na parte final do inciso IV do art. 22, por meio da Lei 14.073/20, que prevê o sistema de recolhimento de votos, passando a assegurar a votação não presencial.
“Art. 22. Os processos eleitorais assegurarão:
(…)
IV – sistema de recolhimento dos votos imune a fraude, assegurada votação não presencial; (Redação dada pela Lei nº 14.073, de 2020)
Com base nessa nova introdução da norma jurídica, a parte autora pretende que o réu, Fluminense Futebol Club, seja compelido a implementar o voto on-line, ao lado do voto presencial, para as próximas eleições do Clube, a serem realizadas em novembro deste ano.
Relevante observar que a Lei nº 14.073 de outubro de 2020, que introduziu a nova redação ao inciso IV do art. 22 da Lei Pelé, que é o fundamento da pretensão deduzida, foi editada com a finalidade de disciplinar medidas emergenciais destinadas ao setor esportivo a serem adotadas DURANTE O ESTADO DE CALAMINDADE PÚBLICA provocado pela Pandemia do Covid-19 . É o que reza, inclusive, seu art. 1º.
“Art. 1 º Esta Lei dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor esportivo a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020 , e altera as Leis n os 9.615, de 24 de março de 1998 , e 13.756, de 12 de dezembro de 2018.”
Com isso, a disposição normativa que passou a assegurar a votação não presencial, decorreu do momento da crise sanitária, de modo a possibilitar que as entidades desportivas não ficassem com suas regras de administração comprometidas em decorrência do Estado de Calamidade Pública, crise essa que, como é notório, já se amenizou consideravelmente, senão, não existe mais.
Todas as atividades, nas mais variadas áreas, já voltaram à sua normalidade, com certas limitações que, ainda que existam, não colocam em risco seu desenvolvimento de forma adequada e esperada.
Evidente que a vontade legiferante de assegurar a votação não presencial se deu para preservar os direitos das entidades desportivas em razão das inúmeras limitações, notadamente do direito de locomoção, impostas pelas medidas de restrições pelo Poder Executivo, de modo a conter o avanço da crise sanitária que a todos assolava.
Hodiernamente, o motivo que legou a se estabelecer o voto não presencial não existe mais.
A exegese da hermenêutica jurídica nos impõe enfrentar o tema através da inteligência do Direito, à luz de uma interpretação sistemática e teleológica de nosso ordenamento jurídico.
A interpretação da norma exige do intérprete sensibilidade para extrair a real vontade do legislador, e para tal, deve considerar inúmeros fatores, inclusive as circunstâncias que estavam presentes no momento de sua edição, e que ensejaram a sua inserção no mundo jurídico, de modo que se possa dar o real e verdadeiro sentido e alcance que o comando normativo impõe.
Da conjugação desses elementos, resulta a ratio legis, o sentido, o espírito, a razão da lei.
Relevante, nesse ponto, citar a doutrina do mestre Carlos Maximiliano, que há muito, assim orientou e continua auxiliando os operadores do direito.
“Interpretar é explicar, esclarecer, dar o significado do vocábulo, mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão.
Daí cabe ao intérprete examinar o texto em si, o seu sentido, o significado de cada vocábulo. Inquire qual o fim da inclusão da regra no texto, e examina este tendo em vista o objeto da lei toda e do Direito em geral. Determina por esse processo o alcance da norma jurídica, e, assim, realiza, de modo completo, a obra moderna do hermeneuta” (Calros Maximiliano in Hermeneutica e Aplicação do Direito, Liv. Freitas Bastos, 1957, 6ª ed., p. 13 e 24).
A interpretação é algo mais do que o conhecimento literal da linguagem da lei, para envolver também a perquirição da sua força e de sua vontade. E para essa compreensão, a interpretação teleológica, que extrai a ratio legis, a vontade do legislador infraconstitucional. Através do elemento teleológico busca-se a justificação social da lei, a finalidade perseguinda pela norma, o “para quê” da lei.
Assim, nota-se que as normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao seu espírito e à sua finalidade. O método interpretativo teleológico é o que procura revelar o escopo do comando legal, o valor ou bem jurídico visado pelo ordenamento.
Vale destacar os ensinamentos do Ministro do STF, Luiz Roberto Barroso.
“À falta de melhor orientação, deverá o intérprete voltar-se para as finalidades mais elevadas do Estado, que são, na boa passagem de Marcelo Caetano, a segurança, a justiça e o bem-estar social.” (Luiz Roberto Barroso in Interpretação e Aplicação da Constituição, 3ª ed., Ed. Saraiva, p. 138)
O julgador, na aplicação da lei deve perquirir suas finalidades, procurando interpretá-la de forma a que venha a servir aos interesses sociais e não contrariá-la. Usando dessa faculdade de interpretação, cabe-lhe dar ao texto a necessária elasticidade, fazendo com que a norma, que muitas vazes pode ser acoimada de anacrônico, se adapte e se conforme com o meio e as realidades do presente, atendendo às necessidades sociais que, por força da dinâmica da vida em sociedade, muitas vezes são drasticamente alteradas com o decorre do tempo, e eram desconhecidas na época em que a lei foi promulgada.
Nessa toada, o magistrado deve dar o alcance necessário à norma a fim de dirimir os conflitos de interesse à luz de nosso Estado de Direito, solucionando as lides da forma que melhor atenda os interesses sociais.
Por todo esse contexto, considerando que a interpretação teleológica e sistemática da norma jurídica, associado à autonomia e independência de organização, funcionamento e administração das entidades de práticas desportivas, evidencia-se não há como prosperar a pretensão autoral.
Isto posto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido inicial, com espeque no art. 487, I do CPC e condeno o autor ao pagamento das custas e honorários advocatícios que fixo em 10% sobre o valor da causa.
Cumpridas as formalidades legais, encaminhem-se os autos ao DIPEA, para as providências cabíveis.
Transitada em julgado, dê-se baixa e arquive-se”.