O que faz um clube ser considerado gigante?
Neste novo modelo de futebol, cada vez mais polarizado, o que faz com que os investimentos sejam direcionados ao clube A e não ao clube B?
Quais serão as chances num futuro bem próximo de um clube com menos da metade de captação de receita que o outro se manter competitivo?
Vocês têm essas respostas? Já refletiram sobre isso?
Renato Soares Coutinho, historiador da UFF, publicou sua tese de doutorado em 2013. Virou livro. Livro que recomendo de maneira absoluta para todo tricolor interessado em ajudar nosso Fluminense a sair da letargia que nos assola. Chama-se “Um Flamengo grande, um Brasil maior”, editora 7 letras.
No livro, o professor explica de maneira documentada como se deu a formação da torcida do Flamengo que, nas últimas pesquisas (datafolha 2019) aparece vinte vezes maior que a nossa (20% x 1%).
Como que dois clubes nascidos praticamente na mesma época, em bairros vizinhos e com o mesmo DNA (sim, leiam o livro. Vocês se surpreenderão e afastarão as mentiras que contam como verdade) puderam, depois de pouco mais de um século, apresentar um distanciamento tão grande em termos de número de torcedores?
A verdade, meus amigos (de novo, documentada na tese que virou livro) é que a torcida do Flamengo cresceu com base na estratégia, no puro marketing, quando o termo sequer existia nestes rincões. Entenderam lá atrás que o futebol era algo com alto poder de crescimento, que era um negócio de enorme potencial, e buscaram trazer o povo para um esporte que, até então, era praticamente restrito às elites.
O Globo, o Jornal dos Sports, as rádios – que detiveram o monopólio da informação no Brasil por décadas e décadas – e até o governo federal, na cruzada pela formação de um sentimento nacionalista (e ufanista!), investiram na massificação da marca Flamengo. Seria o time do povo, o time de todos, em contraponto à elite tricolor e ao “imperialismo” vascaíno, personificado na enorme colônia portuguesa que, à época, detinha parcela enorme do controle da produção industrial e comercial. Era o pobre contra o rico, o empregado contra o patrão.
Hoje, para cada real que o Fluminense recebe, o Flamengo recebe algumas vezes mais. Não é pelas cores da camisa.
E por que será? Porque ganha campeonato todo ano? Não. Não ganha. Por que tem a torcida mais fiel do Brasil? Não. Não tem.
Porque são muitos, amigos. Lamentavelmente são muitos.
Dá para fazer algo idêntico ao que fizeram Flamengo e os meios de comunicação (com a ajuda do Estado) a partir da década de 30? Não. Não dá. Naquela época o futebol ainda engatinhava, a formação das torcidas era um campo inexplorado. Hoje, não. O cenário está estabilizado, as dificuldades são enormes.
Mas dá para se inspirar na história.
Afinal, sabemos todos, dificuldade não significa impossibilidade. O caminho pode ser mais duro – e é! – mas é possível trabalhar para pavimentá-lo, tentando usar o mesmo racional lá de trás.
Cortemos para 2019. Que cenário temos?
Temos um Maracanã como nossa casa. Temos por si só a enorme possibilidade de polarizar com o Flamengo em razão da “parceria” que existe no estádio. E temos espaço. Coisa que eles – saturados que estão – não têm.
O Maracanã acolhe setenta mil pessoas. E hoje, com o time na crista da onda, é pequeno pro Flamengo. Tem sócio rubro-negro que paga mensalidade e não consegue marcar ingresso. E são muitos. Eu falei sócios. Vocês imaginam o povão?
Já se deram ao trabalho de ver pela TV uma partida do Flamengo no Maracanã? Repararam a mudança absurda do perfil do torcedor no estádio? O que era povão virou um pasteurizado – e esbranquiçado! – mar de “modinhas” tirando selfie atrás de selfie.
Repararam que o fio inverteu? O povão se amontoa em bares e lares enquanto o estádio fica apinhado de gente com dinheiro. Amigos, o Flamengo gentrificou sua torcida. Importa mais o quanto pagarão do que o quanto gritarão em apoio ao time dentro do estádio. Com 20% da população brasileira eu acho que eles podem se dar a esse luxo, ainda que eu considere – e como considero! – que o futebol negócio ainda matará o futebol.
Mas o que tem o Fluminense a ver com isso? Tudo. Mas tudo mesmo.
Em primeiro lugar, para o Flu o estádio é um oceano. Setenta mil lugares com uma média constante nos últimos anos de quinze mil ocupados. Há, em regra simples, cinquenta e cinco mil lugares ociosos por jogo. É mais que Engenhão e Laranjeiras juntos!
O Fluminense aceitou passivamente ao longo de anos a pecha de clube de elite. E viu sua torcida minguar. Sem torcida, sem atrativo para o investidor; sem o dinheiro do investidor neste novo futebol, sem competitividade; sem competitividade, sem aspirações que não sejam brigar pelo rebaixamento. É mais ou menos isso.
Por que não pegamos PARTE desse Engenhão que há no Maracanã e não chamamos ao estádio o cara que está alijado dessa realidade? Quantos tricolores já existem que não podem ir ao estádio e quantos podem ser formados com uma política agressiva de captação de torcedores?
Qual seria a repercussão da sociedade ao ver que o outrora aristocrático Fluminense hoje se impõe como um clube que tenta romper o perverso modelo de gentrificação dos estádios?
Qual seria o ganho direto no âmbito esportivo com um incremento de nossa média de público para vinte e cinco ou trinta mil pessoas?
Ah… Mas tem custo. Tem não, amigo. Tem investimento. Nossa torcida está minguando. Reparem que até na época de ouro da Unimed, que trouxe conquistas importantes, nosso crescimento foi traço.
Títulos importam para aumentar torcida? Sim, importam. Mas tanto Flamengo quanto Corinthians – as duas maiores torcidas do país – tiveram seu maior crescimento na base de torcedores durante períodos de seca (Está documentado no livro também). Títulos importam, mas pertencimento importa muito mais.
Propósito importa muito mais.
Dei a ideia que darei agora aos dois últimos candidatos à presidência do Clube: Mário e Tenório. Naturalmente não é exaustiva, é um conceito.
Vocês sabem quanto custa uma boa máquina de acesso biométrico? Mas uma boa pra caramba? Menos de mil reais. Vocês sabem que essa tecnologia já está difundida na nossa sociedade de maneira bem estabilizada (bancos, acesso à edifícios, eleições)?
O Fluminense pode fazer a “Digital Tricolor”, o cadastramento de todos aqueles que comprovem renda abaixo de “x” salários mínimos, ou adolescentes até “x” anos, por exemplo. O “corte” dos elegíveis se daria por um projeto estruturado de pesquisa e impacto, necessário para viabilizar o ingresso gratuito desses tricolores no estádio.
Dez mil, quinze mil, vinte mil lugares “gratuitos” por jogo? Depende do apetite de nossos dirigentes e dos resultados do estudo acima.
Ah… Mas vai ser uma confusão danada na fila. Não necessariamente. Acessos biométricos espalhados por pontos estratégicos da cidade. Quer ir ao jogo no domingo? Está com a digital cadastrada e aprovada pelo clube? Dá uma passada em um dos pontos, faça o check-in com a digital e só aqueles que fizerem esse procedimento poderão ser validados, na segunda etapa, justamente a catraca do Maracanã. É bem melhor e mais prático que a tal da troca de ingressos que temos hoje.
Vai virar bagunça? Vai perder o controle? Aí, meus amigos, depende da competência de quem faz e toca o projeto. Mas se o Flu contratar – ou quem sabe permutar! – uma boa empresa, o negócio sairia de forma tranquila, sem sobressaltos.
Recredenciamentos anuais ou semestrais, análise de fichas, divulgação volantes em comunidades carentes com possibilidade de cadastramento na hora… Tudo isso é viável.
Ah… Mas vai ter que abrir um setor a mais no Maracanã? Vai. E custa um preço “X”. Custa!
“X” que é muito mais barato do que o custo da inação, da letargia e do mau posicionamento do conceito Fluminense que dia após dia míngua nossa torcida.
O Fluminense só será atrativo se for criativo. Troco qualquer troféu por um gráfico de subida constante de nossa torcida. Só isso nos salvará deste novo futebol.
E por favor, não entendam errado. Não é apenas pelos dez ou vinte mil torcedores a mais no estádio, é pelo reposicionamento do Fluminense, um dia pioneiro em suas práticas, hoje submerso no marasmo que assola nossa sede e nossa política.
Vamos chamar o povo? Vamos reconstruir nossa torcida? Vamos criar práticas que sejam inclusivas, simpáticas à sociedade? Vamos fazer o contraponto ao que não pode mais fazer nosso principal rival? Vamos virar pauta positiva? Trabalhar por uma nova leva de milhares de tricolores no Maracanã?
Demora? Ô… Demora. Mas qualquer demora será muito melhor do que o pouco tempo que teremos entre os grandes se nada for feito.
Concordam?
Temos 55.000 lugares no nosso estádio, 55.000 motivos para pensarmos neles, uma arquibancada que precisa ser reconstruída, repovoada (imaginem a felicidade de um dia ouvir “os 55 mil de sempre”) e uma história de glórias a ser recontada.
Ou melhor, REPROGRAMADA.
Levanta, Fluminense!
CURTA
2021. Campinho de pelada no Morro dos Prazeres, Santa Teresa, Rio de Janeiro. Meninos jogam bola. 14h. Fim da pelada, molecada conversando. Há dois tricolores no meio de um mar de flamenguistas. Estão com pressa. Irão ao Maracanã. Baixinho, um dos flamenguistas puxa assunto. Nunca fui ao Maracanã. Como é lá dentro? Como vocês conseguem ir? Os jogadores ficam perto? É igual ao que passa na TV? Os tricolores respondem com orgulho. Um outro flamenguista chega provocando. Fala do último Fla x Flu. Não estava lá. Duzentos reais é uma semana de trabalho de sua mãe. Os meninos riem, um provoca o outro. Até que um dos tricolores veste a camisa e se despede do resto da galera. Tá na hora, temos que ir. Dali até o ponto de ônibus vão levar uns 10 minutos descendo as vielas. Vão orgulhosos. São Fluminense. Não, não. São o Fluminense.