Cronologia de uma vergonha

20 minutos de jogo em Porto Alegre. O Fluminense agoniza em campo, completamente esfarelado, contra um Grêmio que literalmente faz o que quer com o jogo. Perde por 2 x 0 e me deixa maluco. Como um time pode ser tão ruim? Que piada é essa de sair tocando a bola no campo de defesa até perdê-la na própria intermediária? Qual o objetivo de tocar de lado e virar refém de um time muito mais bem estruturado? A cerveja não para no copo, o cigarro é mastigado como se fosse chiclete. O coração vocifera e as sinapses do cérebro são apenas ódio e vergonha.

 
 
 

Gol do Grêmio. Mais um. Três. Vinte e um minutos. Gol de almanaque, uma troca de passes irresistível que acaba com um toque por entre as pernas do goleiro. A fala falta, a respiração acelera, o corpo pede calma.

Não obedeço. Uma onda gelada sobe pela espinha, o suor desce pela testa e pescoço e deixa a camisa ensopada. Amigos discutem alguma coisa que eu não entendo bem. Um deles sobe as escadas e vai embora. Os demais não se olham. Uns andam de um lado para o outro, outros, como eu, botam a mão no queixo, tentando segurar a boca. Uma merda.

Na televisão um Fluminense entregue às baratas. O raciocínio começa a clarear e os instintos de defesa eclodem de forma avassaladora. Não há mais um jogo a ser visto, mas sim a dignidade a ser preservada. Flusócio filha da puta. Peter desgraçado. Ódio eterno aos sabotadores de minha paixão. Ratos. Ratos, eu repeti em surdina.

O cálculo era um pouco complexo. Três gols em vinte minutos, seis em quarenta. Mais o mesmo no segundo tempo. 12 x 0 Grêmio. Não. Isso não acontece. Os caras vão tirar o pé, talvez façam mais um no primeiro tempo e mais um ou dois no segundo. 6 x 0 me parece razoável como desfecho. E eu me preparo para lidar com uma humilhação tão íntima quanto perversa.

“Esse Diniz, na verdade, é um babaca”. “O cara está brincando de Fluminense”. “Vocês lembram se algum técnico já caiu no intervalo?”. Ninguém me respondeu.

O campo estava lá e eu não sei bem quanto durou essa tortura mental. O tempo das paixões não bate com o do relógio. Fiquei com medo que aquilo nunca acabasse. Olhei para minha filha que estava comigo. 4 anos. “De quem foi o gol, papai?”, ela perguntou. “Do Fluminense”, eu menti.

Airton, Bruno Silva e Allan. Inventaram o tal de Guilherme que não jogava desde 2018. Lento que só. Luciano daquele jeito e o Colômbia – sozinho – correndo como se não houvesse amanhã. Nem hoje.

Nem hoje.

Filhos da puta. Fecha logo esse time e vamos focar no próximo jogo com outro treinador.

“Fora Diniz”. “Leva embora essas merdas que você escalou”. “Arrombado”. “Porra, na boa… Por que a gente sofre com isso? Esses caras não merecem nada”.

Negão achou um gol.  Lembro de ter debochado. “Gol foi todo errado. Só deu certo porque eles erraram”.

3 x 1 pelo menos é um placar que não é humilhante. “Na cara, não”. “Agora esses vagabundos precisam pelo menos correr”.

Estava indo pro banheiro quando ouvi os caras gritando. Voltei a tempo de ver o Luciano comemorando. “Que isso? Como foi? Porra! Esse puto resolver correr?”.

Quando escutei o primeiro “vai dar” (não fui eu) me senti esquisitão. Na verdade a primeira sensação foi de vergonha. Falei nada. Não estava claro para mim o que rolava na minha cabeça. A segunda onda de sensação ainda era a de defesa da própria sanidade. “Agora vão jogar por uma bola e o Diniz não vem com o Pedro nem a cacete”.

Na loucura do tempo, ampulheta desembestada, o intervalo deu a sensação de que simplesmente não aconteceu.

“Ahahahahaha, só pode ser sabotagem. Meu irmão… Esse aí é o Danielzinho? É o Da-ni-el-zinho?, debochei em tom raivoso. O Diniz está de SACANAGEM. “É com ele que iremos mudar o jogo?”.

“O que o Bruno Silva ainda faz dentro de Campo?”

“Esse cara vai botar o Pedro pra jogar só no segundo turno, né? Isso se não for esperar o Abad negociar o cara com o primeiro time ucraniano que aparecer”.

“Agora peraí… Caral… ele não tirou o Guilherme. Aquele ali é o Guilherme, né? Só pode ser brincadeira”.

Seguiu-se o jogo e o Fluminense virou o Barcelona do Petkovic. Um Barcelona desestruturante de deboches e amassador de certezas.

Uma, duas, três chances claras.

Gol. Sofrido, suado, um quase ‘não gol’.

3 x 3 na casa dos caras. Sinapses de euforia e esperança.

Será? “Será, amigos?”…

Pênalti. “Claríssimo”, menti aos berros.

Peguei nos braços do amigo que ensandecia ao meu lado. “Tira a bola do Luciano, tira a bola do Luciano, tira a bola do Luciano”.

– Gustavo, é o Pedro que vai bater, olha lá…

Naquelas circunstâncias, qualquer outro batedor enfiaria uma jaca de peito de pé, na reza de que e bola entrasse no retângulo sem tempo pro goleiro pensar no que fazer. O Pedro, de sacanagem – só pode ser – resolveu deslocar o goleiro. A ampulheta parou e a bola entrou como se rolada com um peteleco. Naquele momento eu estava parado em algum ponto do espaço-tempo, com a alma abduzida por alguma garganta cósmica. Demorou 3 semanas.

Mas veio.

4 x 3.

– Peraí, pensei. E o VAR? Var no pênalti é sacanagem. Não pode ter. Tem que ser muito cretino para marcar invasão de área. Paradinha não houve.

Enquanto delirava a bola já rolava novamente. O Fluminense amassava o Grêmio e virava muito mais que um jogo. Virava estômagos e fazia ruir certezas que se embaralhavam livremente pelos ares.

– Quase o quinto! Puta que pariu! É pra baixo, Danielzinho!

Dores cavalares no pescoço e no lado direito do corpo. Suor. Tiques nervosos até então inéditos.

“Acabou, porra! Acabou, desgraçado”, gritava imbecilmente a cada hora que o juiz aparecia na tela. 35 minutos do segundo tempo.

Sei lá o porquê, mas lembro ter pensado assim: “se o jogo acabar agora por algum motivo eu acho que a regra valida o resultado”.

Eu tinha 4 anos e minha filha – um olho no jogo e outro nos passarinhos – em torno de 40.

4 x 4.

E de novo neguei o Fluminense.

“Essa defesa só tem brincalhão. Ninguém subiu, porra!” .

“Agora tem que segurar. Os caras vêm com tudo”, pensei.

Mas como às vezes sou metido a fodão, o que falei para fingir honrar a camisa que vestia foi: “ainda dá, porra, vamos pra cima”.

Minha filha começou a correr a esmo pelo espaço onde estávamos. Braços erguidos, cabelos caindo pelos olhos. Gritos guturais de todos. Deitei no chão cheio de euforia e culpa.

5 x 4, nos acréscimos. Uma monstruosidade.

“Acabou, porra! Acabou!”.

49, já não me sentia mais um imbecil.

– Acabou, porra! Acabou… Var.

VAR? O que houve? Filhos da puta.

Vão marcar. É foda. Todo jogo é a mesma coisa. Canalhas. VAGABUNDOS!

– Não? Não deu? Não deu? Porra! Fluminense, porra! Isso aqui é Fluminense, filha! Isso aqui é Fluminense, cacete!

Priiii. Ergue o braço o juizeco.

Alegria desmedida. Êxtase incomparável. Orgulho infinito.

E entre urros e abraços, entre risos e socos no peito, mais uma sinapse desconcertante: vergonha.

Uma vergonha que me fez pedir, ainda que em absoluta surdina: “desculpa, Fluminense, desculpa de coração. Eu te amo”.