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Não, não vou escrever sobre o vexame de ontem, em que ficou ainda mais marcada, pelos 45 mil tricolores presentes no Maracanã, a diferença acachapante entre o que merecemos e o que nos oferece hoje uma das mais constrangedoras gestões de futebol da história do Fluminense. Definitivamente, não os merecemos, mas eles estão messianicamente convencidos do contrário, e parece, pelas adesões obscenas de última hora, que vão continuar cometendo por mais três anos as barbaridades que já se habituaram cometer. Vou cuidar de lembrar de uma das mais lindas passagens do Fluminense imenso, eterno, vou tratar do Manfrini e de uma certa noite de 1973.

1973 não começou sem um travo amargo em nossa garganta. No ano da falta de graça de 1972 coadjuvamos o Campeonato Carioca pagando um rocambolesco vexame na final da Taça Guanabara, contra o Flamengo, em que nos restou assistir estarrecidos ao bizarro espetáculo pirotécnico de um palhaço a cambalhotar. Resultado: eles 5 x 2. Ainda naquele Carioca, Fluminense e Vasco travaram um duelo de Komodo pelo passe do Tostão. Tostão foi único em sua unicidade típica e é um dos maiores jogadores de todos os tempos. Muitos de nós o escalamos por noites seguidas no time que chapava a foto da imaginação a pretexto de driblar a insônia. Ao despertar do sonho dormido, entrávamos imediatamente no sonho acordado e corríamos para a banca mais próxima em busca da confirmação, na capa com letras colossais do Jornal dos Sports, em seu cor-de-rosa característico, da contratação do mineirinho genial. As especulações davam conta de que Tostão guardaria uma certa inclinação por jogar no paraíso terreno das três cores. Os portugueses do Mercado São Sebastião, no entanto, içaram as velas aos ventos dos mares financeiros sempre dantes navegados, cobrindo nota por nota a proposta tricolor, fechando com o mirrado craque que empurrou em 70 o Jairzinho para a ponta-direita e o Rivelino para a esquerda. Vivemos nessa noite a mãe das agonias. Meses depois, para comoção de todos os brasileiros, Tostão viu-se forçado a interromper a carreira por não ter superado as sequelas de uma operação corretiva de descolamento de retina. O Vasco entubou um prejuízo que lhe custou nacos de carne por muitos anos. Ganhou, entretanto, o terceiro turno do Carioca. Tinha o Tostão.

 
 
 

Nas noites de frustração tostaniana navegar era preciso, e o Fluminense tratou de repor a tempo certo um sopro de esperança no combalido coração do torcedor. Sonho morto, sonho posto. O mesmo diário cor-de-rosa que negou a capa que tanto esperaram os tricolores trouxe o alento possível: Gerson, Artime e Ary Hercílio. Gérson, o imortal Canhotinha de Ouro, o homem que fazia dos pés mãos e transpunha, em trajetória de geometria sinuosa, a bola de seus pés-mãos para o bico da chuteira do ponta-de-lança a ter pela frente apenas um goleiro perplexo. Gerson desmoralizou o conceito de distância, levando-nos a não perceber diferença entre quatro e quarenta metros. Inventou o tempo e espaço dislexos. O Canhota fazia o que fazia entre uma e outra tragada no cigarro que lhe abreviou a carreira. Gerson era mortal. Assim como seu vício. Tendo sido bicampeão em São Paulo, pelo clube xará da cidade, voltava ao Rio aos 31 anos, sempre genial, mas agora com suas limitações atléticas expostas à luz do dia. Era confessadamente tricolor. Artime veio da Argentina para o Palmeiras cavalgando ruidosa reputação. Não foi mal no Parque Antártica, mas definitivamente não era aquele Ovomaltine todo. Fracassou retumbantemente. Ary Hercílio, o apêndice discreto do pacote, mostrou-se um aplicado zagueiro, juntando no mesmo baú de competência o vigor típico dos jogadores gaúchos e uma técnica de não se lhe virar o rosto. O Fluminense ganhou o segundo turno do Carioca, mas perdemos a final pra quem não se deve perder. No Brasileiro do sesquicentenário andou trôpego pela tabela, abreviando a tépida campanha com uma derrota para o Atlético Mineiro em um Maracanã cético, no que fazia muito bem em ser cético. Não apenas perdeu o Fluminense em 72 o que não podia no campo perder. Perdeu para sempre Ary Hercílio, tragado por uma onda na encosta da Niemeyer, enquanto pescava com amigos.

1973, portanto, nascia pela esperança rediviva de um frustrado 72. O Fluminense trazia de volta o emblemático Zezé Moreira, com seu portfólio de glórias tricolores castigado pela implacável ação do tempo. O rigoroso Zezé, embora pilotasse uma pífia campanha no primeiro turno do Carioca, fez valer sua mística de no Fluminense acertar mesmo errando: seu aval foi fundamental para que o tricolor trouxesse para Laranjeiras um dos maiores ícones de sua história. Antônio Monfrini Neto. O Manfrini. O Manfra. Manfrini pintou para a opinião pública brasileira naquele timaço da Ponte Preta que foi vergonhosamente garfado no Paulista de 70. O Manfra estava em boa companhia na Ponte de 70. Nelson – o Nelsinho Batista -, Samuel, Teodoro, Roberto Pinto, Alan, Dicá e Adílson. De lá Manfrini fez escala na Academia do Palmeiras, onde o moleque de 20 anos dividia o quarto com o monstro Ademir da Guia. O Manfra desembarcou no Parque Antártica emprestado, mas com passe fixado. Ganhou prestígio em um elenco de fazer lamber os beiços o mais xiita dos puristas do à época nem tão velho esporte bretão. Ao fim do empréstimo, o Palmeiras demonstrou intenção de exercer seu direito de adquirir o passe, no que bastava depositar o valor acertado em contrato. O Fluminense agiu rápido e procurou os dirigentes da Ponte e do Palmeiras, formalizando seu interesse na contratação do Manfrini. A proposta era muito mais vantajosa para a Ponte e para o craque. O Palmeiras não criou embaraços, afinal, era o Fluminense, e o Manfra foi tratar de cumprir seu destino, aportando à terra prometida de Laranjeiras. Antes, no aeroporto, Manfrini desceu a escada do avião acompanhado de um senhor feliz e esquivo pela emoção. Zezé Moreira reconheceu-o de chofre: – “Guimarães, o que é que você está fazendo aqui?”. O senhor agora identificado respondeu: – “Vim acompanhar meu sobrinho em seu primeiro dia nas Laranjeiras. Eu sou tio do Manfrini”. Guimarães havia jogado com Zezé na década de 30. No Fluminense, é claro. Quando a jovem revelação já despertava interesse em quase todos os grandes clubes brasileiros, o Guimarães ensinava ao sobrinho: – “Você pode jogar em qualquer clube brasileiro, mas não há nada igual ao Fluminense”. Sábio conselho.

Embora o Manfrini já chegasse jogando um bolão, o Fluminense foi muito mal no primeiro turno do carioca, a Taça Guanabara. Uma extraordinária geração estava envelhecendo, e o mestre Zezé reagia a entender assim, talvez por em outro nível estar vivendo o mesmo drama. Mas nem o legendário Zezé resistiria à fúria vitoriosa do Fluminense dos anos 70. Caiu ao fim do primeiro turno. Aproveitando uma longa excursão da Seleção Brasileira, o Fluminense, já com Duque substituindo Zezé Moreira, partiu para a África em uma turnê que a muitos pareceu chacota. Voltou de lá com as revelações Pintinho, Cléber, Rubens Galaxe e Marquinho, os três primeiros titulares. Os grandes Denílson e Gérson deram passagem ao bloco dos meninos. O tricolor voltou tinindo da África, ganhou o segundo e o terceiro turnos. Muitos creditaram o sucesso daquele time à coragem do Duque em barrar Denílson e Gérson. Outros a simplesmente essa barracão coincidir com a subida de uma geração singular, Pintinho e Cléber à frente. Poucos, os iniciados, andaram depositando o saldo na conta de uma hipótese menos tangível, embora respeitável por tratar-se de versão com um pé naquele mundo desconhecido das gentes: o pai-de-santo que levado por Duque batia ponto às Paineiras sempre que o Flu se concentrava. Havia entre os jogadores um, dos mais importantes, que fazia as vezes de cambono do hômi. Cambono, bem…, é uma espécie de tradutor daquele dialeto típico dos pais e mães-de-santo. Era o hômi dizer “mizifio, se acuenda, tem ecó no teu caminho fazendo ebó prum mais suncê ficá nas mão dos casaca branca”, e o craque-cambono imediatamente decifrar: “o pai está dizendo que tem uma bicha apaixonada por você que está fazendo trabalho com comida para você ficar doente”. Era dito e feito. A tudo o que o pai dizia, em tudo alguém se identificava. A grande final era contra o Flamengo, ganhador da Taça Guanabara.

Na véspera do jogo era indisfarçável a apreensão nas Paineiras pela chegada do pai-de-santo, e nada de o místico chegar. Duque fazia sulcos no chão do lobby de tanto andar de lá pra cá. E passou tempo, e passou tempo à medida que o tempo se faz muito mais tempo do que é tempo em verdade quando se está ansioso. Foi um alívio monumental a chegada do hômi. E o hômi foi falando aquelas coisas que geralmente os hômis falam pra aquecer as turbinas dos espíritos. E o Duque a cada volteio de conversa mal acabada insistia clamando ao pai: – “E amanhã? A gente ganha ou não ganha?”. Depois de um preâmbulo de lembrar Fidel e depois de muito perguntar do Duque, o pai-de-santo enfim pareceu que ia dar uma pista: – “Amunhã, mizifios…”, deu uma enigmática risada em intervalos curtos, todos morrendo de aflição, esperando pelo decreto do além: -“Qunto fuoi o jungo de ocês premêro traspassado?”. Todos olharam pro cambono: -“Ele está perguntando quanto foi o nosso jogo com o Flamengo na primeira final do ano passado”. Duque respondeu: – “5 x 2 pra eles, e amanhã? e amanhã?”. O pai respondeu:- “Vaicê pertinho, suncê…”.

Chovia aquela noite a chuva de muitas noites, a chuva de todas as noites. Chovia a chuva que jamais havia chovido. O movimento no entorno do Maracanã era intenso. A chuva ia empurrando para dentro do estádio todos aqueles que costumavam fazer hora pro jogo tomando umas cervejas nos barzinhos das cercanias do Maraca. Clima de final. De Fla x Flu final. Só quem já viveu um desses dias ou noites pode ter ideia do que seja um Fla x Flu final. É de fazer um Corínthians e Palmeiras jogo de várzea.

Manfrini, não escondia dos companheiros a ansiedade com que esperava a final. Sentia-se diferente. Desde menino dizia-lhe a chuva algo além do que diz a chuva a qualquer um. Quando a delegação do Fluminense chegou ao Maracanã, Manfrini sabia que aquele jogo não seria apenas mais um jogo, a chuva isso lhe dizia, e já estava a chuva nessa altura alagando toda a Radial Oeste. Manfrini entrou em campo e o campo alagado, grama sob o mar de água, não lhe causava estranheza. Gene Kelly de chuteiras, Manfra bailou na chuva, andando sobre as águas com a desenvoltura de um trenó no gelo. Deslizava solene, esculpindo uma atuação das mais memoráveis dentre todas as atuações que pontearam de êxtase e perplexidade a história do futebol. Foi divinamente sublime. Jogou o que nunca ninguém ousou jogar. A turba rubronegra deixava cair o queixo junto às cascas do amendoim torrado e frio que era jogado do túnel aos torcedores quando solicitados à distância pela provisão. Em resposta, os torcedores embolavam as notas de cruzeiro de forma a torná-las projéteis arremessáveis ao vendedor como contrapartida aos cones de papel que continham a leguminosa salgadinha. O jogo estava 2 x 2, depois de o Flamengo reagir aos 2 x 0 que marcamos implacavelmente. Dadá Maravilha não podia escolher noite pior para desengonçadamente ousar fazer dois gols no time do Manfrini. Pouco depois do segundo gol do Dadá, a metade do coliseu que circundava a grama-água assombrou-se ao ver a bola do Manfrini, após o craque desvencilhar-se do goleiro rubro-negro, sair de seus pés e preguiçosamente caminhar na direção do gol vazio dos flamenguistas. Aqueles quatro segundos que transcorreram entre o tapa do Manfrini na bola e a bola entrando mansamente no gol do Renato foram os mais longos quatro segundos da história dos homens. Nem os quatro segundos que expulsaram Adão e Eva do Paraíso, que levaram os jacobinos para ajeitar a cabeça de Maria Antonieta na guilhotina, que demorou para que se abrisse o Mar Vermelho, para que César se encorajasse a atravessar o Rubicão, para que Sísifo redecidisse descer o morro para trazer novamente ao cume a pedra; nenhum desses quatro segundos demorou as três eternidades que duraram os quatro segundos da bola do Manfra.

O jogo terminou num grandioso 4 x 2, Dionísio deu números finais ao placar. Manfrini entrou para história do Fluminense e nunca mais tirou o Fluminense de seu coração. Vinte anos depois, num fim de semana em que tive o prazer de receber o Manfra e família na casa em que morava em Friburgo, o craque lembrou emocionado daquela final, e chorou o mais puro dos choros. Ele ama o Fluminense com a devoção dos convertidos. Os tricolores que não tiveram a alegria de vê-lo jogar naquela noite que perguntem aos que tiveram, e eles confirmarão o épico da noite que se tornou a noite de todas as noites.

Amém.