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Não há Fla x Flu banal. Se nasceu, segundo Nelson, 15 minutos antes do nada, no nada só habitava incrustada, se no nada se possa incrustar algo, a polêmica. O Fla x Flu é filho e mãe da polêmica, de longe a rivalidade mais radical e apaixonada do futebol mundial. Há por esse mundo de crenças e descrenças – algumas vãs, outras vis – rivalidades de origem religiosa, cultural, territorial, étnica, de tudo quanto é jeito e calado. Mas a rivalidade do Fla x Flu nasce da cisão familiar, e família é chão de amor e ódio, sempre superlativos. Fla x Flu é único por ser tudo, e tudo por ser único. Jamais intransitivo, nunca fim em si mesmo. Amaldiçoados serão os que não o entendam como rito de celebração da vida e salvação da morte efêmera, e abram mão de prerrogativas esportivas em nome de uma fraternidade imprópria. Todos, ainda que entre os gentios, têm o seu Fla x Flu imortal, e todos estão certos: todo Fla x Flu é imortal. Eu tenho alguns, mas há um que me tocou com a força transformadora que trouxe razão e sentido para a vida de um adolescente para além de seu enredo patético. Foi o Fla x Flu da Revelação, meu espírito santo particular, meu altar e oráculo. Foi no ano da graça de 1969. E houve nesse ano graça de saciar a sede e fome das almas mais aflitas.

 
 
 

Quando o Flávio matou a bola, eu estava bem ali, atrás do gol. Cinco anos sem título. Mal sabia que o que estava por vir inauguraria uma série interminável deles. Aquele Fla x Flu recebeu o segundo maior público do mundo em jogos entre clubes. O primeiro, é claro, foi também um Fla x Flu, o de 1963. Rolava um jogo tenso. Dominguez, o goleiro argentino deles, expulso sob suspeitas. O limitado Liminha acerta um chute em balão, e a bola descreve uma trajetória cujo ponto de inflexão produz um inusitado encurtamento que trai o imprevisível Félix. Era o primeiro empate. Cláudio, o desertor Garcia, e Wilton fizeram os dois primeiros gols, mas no momento em que o Flávio matou aquela bola o jogo estava 2×2. Com gol do Dionísio, o Flamengo novamente empatara.

O Flávio era mortal. Revelou-se no Sul como uma das maiores promessas do futebol brasileiro nos anos 60. Depois, patinou no Corínthians até reencontrar-se com o seu destino naquele Fluminense campeão de 69. Ah, óbvio, a bola que o Flávio matou com elegância morreu na rede do Flamengo, desencadeando a loucura coletiva tão ao gosto daqueles anos marcados pela contracultura. Foi a nossa primavera de 68, nosso Woodstock. Cafuringa, Timothy Leary; Lula, Cohen-Bendit; Samarone, Hendrix; Flávio, Bob Dylan. Em tempos de catarse planetária, de degradação da certeza, de proibição do proibido, de luta ideológica em todos as frentes, de crença nas transformações sociais pela via do pacifismo anticonsumista, de ver o novo com olhos novos. Nesses tempos todas as festas se embaralhavam em uma única festa cósmica, uma festa que não queria e não podia terminar. Foi um dos títulos mais comemorados em minha vida. Pode até não ter sido para a vida de outros, mas aos 14 anos a visão do mundo tem uma generosidade peculiar, irrecuperável. Ainda mais quando se tem 14 anos embarcado no mundo daqueles dias, inundado de amor, loucura e esperança.

A festa, ou o sonho, como diria pouco depois Lennon na iconoclástica “God”, só acabou quando o planeta perplexo recebeu a notícia que todos temiam: o fim dos Beatles. Como entender a dor lancinante de uma vida vivida a intervalos de álbuns e títulos – e pela degustação de uns e de outros – sendo tão tragicamente atingida? Os Beatles, ao lado do Fluminense, constituíam a principal vertente de fuga de minhas perplexidades e angústias da adolescência. Seu fim batia em mim como uma perda carnal. Amputavam-se de mim fontes de sonho, as razões para aquela vida tão sem razões que leva em correnteza os adolescentes para o vazio, de onde só saem pelo amor ou pensam sair pelo delírio. Anos mais tarde, recuso-me a guardar a data, morre estupidamente Lennon na calçada do Dakota (estive lá e, olhos sangrados, trouxe em liturgia uma pedra daquele maldito local). Antes, a possível volta dos Beatles e o Fluminense tangível que me servia de refúgio do náufrago me empurravam para o futuro sem medo. Com o brutal assassinato do John vi escorrer pelas mãos parte da água de minha esperança. Um duro golpe para quem ainda tateava o mundo. Jamais perdoei meu destino por me fazer viver aquele sofrimento. Não me restava morrer, no entanto. Estendeu-me mais uma vez a mão salvadora o amigo que jamais me permitiu sucumbir diante do que me pudesse ser mais grave. Não morri vivendo com a morte do John, a ruminar um ressentimento de improvável metabolização, porque o Fluminense tomou meus sonhos mortos em seus braços.

Só reexperimentei essa sensação de perda numa noite de 98, ouvindo no rádio, com a cabeça a entabular projeções que não conseguia conter, a sentença mortal: terceira divisão. Os gentios se apressariam para em êxtase anunciar a morte do eterno. Não entendem o que somos, jamais entenderão. Conhecia de perto o hálito daquele sopro frio e aterrorizante. O Lennon morrendo novamente, e eu não mais um adolescente a ter às mãos o álibi de uma vida inteira a esperar por mim. Onde me refugiaria? Procurei consolo em Ferenczi – arranhei o adulto, para brotar a criança que em mim vive latente -, e mergulhei de cabeça na esperança. Se voltavam os velhos medos, a velha rota de fuga ainda por lá estava: Fluminense. Por isso aquele golpe não me foi mortal, já que a bala encravada a ameaçadores milímetros da medula não atingira o espírito libertário onde moram os caminhos de saída para os que guardam em lugar seguro a usina de sonhos da adolescência. A meu alcance pairava silencioso o conforto balsâmico de uma paixão que não aceita a morte. Sobre ela jamais tive controle, cabe-me vivê-la plenamente. E sou feliz por não poder evitá-la.

O adolescente assombrado pelos fantasmas da dúvida pôde voltar a dormir tranquilo. Não haveria Dakota. Ninguém ousaria matar o Fluminense, porque não se mata o eterno, não se mata o que não morre.