Imaginemos – apenas por alguns instantes e como mero exercício de raciocínio – que o Fluminense seja uma padaria. Sim, uma padaria. Sem ofensa, ilustre torcedor. O pão é algo cheio de nobreza, capaz de alimentar não apenas a alma como também o espírito. Os antigos evangelhos já teciam loas ao pão de cada dia, de forma que não posso imaginar que alguém vá se ofender com a comparação, ainda mais tendo em conta que ela servirá para favorecer nossa reflexão sobre um período difícil da história da nossa amada instituição. Fiquem comigo. Valerá a pena.
É relativamente fácil explicar uma padaria. Quase tão fácil como explicar um clube de futebol. A padaria, que ninguém se atreva a inventar algo diferente, existe para fazer e vender pães. “Pão fresquinho toda hora” é a missão das padarias desde o tempo dos avós dos nossos avós. Da mesma forma, um clube de futebol existe para fazer gols, ganhar jogos e conquistar títulos. Outras coisas podem ser interessantes, mas o essencial, ao menos para nós, pobres e simplórios torcedores cujo caráter foi forjado numa arquibancada de cimento, é apenas isso. No entanto, fiquemos com a nossa padaria, que é dela que quero falar. A padaria Fidalga – vamos chamá-la assim – foi fundada em 1902 e, desde então, como quase todo comércio do mundo, viveu períodos de altas e baixas. Depois do começo heroico e das primeiras dificuldades, nosso estabelecimento se tornou referência na cidade e depois no país, sendo que em alguns momentos chegou a brilhar no cenário global com prêmios e reconhecimentos. Em alguns períodos de crise, a qualidade do nosso pão chegou a cair, mas, graças ao amor de seus clientes, que sempre cobravam dos gestores do estabelecimento um grande esforço para que a Fidalga não deixasse de produzir o melhor pão, a querida padoca sempre conseguiu dar a volta por cima. Pouco antes do centenário do estabelecimento, não foram poucos a apostar que fecharíamos as portas. No entanto, uma década depois, voltamos a produzir o melhor pão das redondezas.
Nas boas e nas más, na maré alta e na maré baixa, nosso negócio sempre foi fazer pão. Até que, um belo dia, vimos uma plaqueta ser afixada na porta da boa e velha Fidalga: “Sob nova direção”. Isso ocorreu há pouco mais de cinco anos, depois de um grupo de sócios da Fidalga criar um grande movimento para que ela tivesse um novo gerente. Com o apoio da maioria da clientela, que sonhava com dias ainda melhores, esse grupo chegou ao poder. E foi então que o adorado panifício passou a viver tempos controversos, para dizer o mínimo. O novo gerente, um alemão de modos refinados, tinha planos diferentes para aquela padaria. Uma vez no comando, ele logo deixou claro que fazer e vender pão não seria mais o principal negócio da Fidalga, pois, na avaliação dele e de seu grupo de apoio, a clientela não ligava para pães tanto quanto ligava para coisas muito mais importantes, como uma boa gestão financeira, por exemplo. Novos tempos, novas prioridades. A padaria precisava se ajustar às melhores práticas de gerenciamento e parar de se preocupar tanto com pães. E aí, ideias surpreendentes começaram a brotar.
A primeira delas, e uma das mais festejadas pelo grupo gestor, foi o reforço do investimento em uma padaria destinada a formar novos padeiros. Localizada em Xerém, a Fidalguinha, como era chamada, revelava a fina flor dos futuros gênios da farinha e do fermento. Muitos deles poderiam ser capazes de, um dia, fazer pães realmente espetaculares. E alguns fizeram, embora não exatamente na Fidalga. Isso porque, depois de pouquíssimo tempo atuando na padaria principal, no bairro das Laranjeiras, todos os jovens de destaque deixavam o quadro de empregados da empresa rumo a grandes confeitarias europeias. Curiosamente, o dinheiro que a nossa padaria cobrava das coirmãs estrangeiras pela transferência dos padeirinhos não era usado para fazer pão, mas para cobrir o rombo nas finanças do negócio principal – que os sócios diziam vir das gestões anteriores, mas que, na verdade, continuou crescendo na gestão deles. Alguns clientes, estarrecidos, perguntaram por que não investiam ao menos parte daquele dinheiro para fazer pães de melhor qualidade ou na reforma da sede principal da padaria, que estava simplesmente caindo aos pedaços. Mas os que pensavam assim eram tratados como beócios trogloditas, que nada sabiam sobre governança e gestão moderna. “Onde já se viu tratar bem os fregueses? Nossos afagos devem ser direcionados às demonstrações financeiras da empresa. Elas sim, merecem ser tratadas a pão de ló” – reclamava, inconformado, o gerente alemão.
Outra ação importantíssima segundo a Pãosócio – nome do grupo de sócios que julgava estar transformando para sempre a gestão da padaria –, era a construção de um centro de treinamento de padeiros. O tal centro era a pedra fundamental daquela administração e seria erguido mesmo que às custas do que aqueles gestores pareciam amar mais: as finanças da Fidalga. O pão da casa melhoraria muito se fosse produzido por padeiros treinados naquele novo e avançado local, garantiam. Graças ao centro de treinamento, imaginavam os experts, voltaríamos a ter o melhor pão do bairro, embora num futuro distante. Eles chegaram a fazer campanhas de arrecadação junto aos clientes tradicionais da padaria. Alguns apoiaram, mas muitos acharam que aquele centro não poderia receber investimentos antes que fosse feita uma bela reforma nas instalações frequentadas pelos clientes ou mesmo que fosse construída uma nova padaria, mais moderna e com espaço para receber mais clientes. Novamente, os que pensavam diferente foram tachados como imbecis. Era óbvio, para os adeptos do planejamento financeiro, do downsizing e do design thinking, que as instalações para os padeiros deveriam ser mais modernas e luxuosas do que as que eram frequentadas pelos clientes. “Nós sabemos o que é bom para os clientes, não eles!” – bradavam aos quatro ventos os eruditos da administração.
A modernidade avançava. E para que ela pudesse prosperar, novas e drásticas providências precisavam ser tomadas. Foi assim que o comitê gestor decidiu liberar um dos melhores padeiros do quadro de funcionários, contratado no início do ano junto a uma padaria do Recife depois de ter obtido destaque na produção de pães no ano anterior. Só que Diego – esse era o nome do padeiro – disse que queria voltar para o emprego anterior, que estava com saudade das praias do Nordeste e simplesmente pediu as contas. E assim, mesmo tendo assinado um contrato longo com a nossa padaria, o grupo gestor não viu qualquer problema em deixá-lo partir. No último final de semana, coincidentemente, a padaria de Recife superou a nossa na competição pelo melhor pão do país com um belíssimo francês preparado pelo tal Diego, justo na última fornada da disputa. Diego vinha para ser o segundo melhor padeiro da Fidalga. Mas não haveria de ser nada, porque ainda tínhamos no elenco o melhor padeiro em atividade no Brasil, há sete anos conosco e dono da impressionante média de três pães feitos a cada cinco idas ao forno. Frederico era o nome desse grande padeiro.
Nossa alegria durou pouco. Há tempos que o gerente alemão vinha querendo queimar o grande padeiro no forno à lenha da Fidalga. Na frente dos clientes, que amavam o pão do cara, o gestor e a Pãosócio eram só elogios. Nos bastidores da cozinha, iam assando o Frederico. Ele, por sua vez, não era santo. Como todo profissional, queria ganhar sempre mais. O problema é que o alemão prometia os aumentos pedidos e depois não cumpria. Até a turma da Pãosócio reclamava da dificuldade do afável alemão em cumprir promessas. Ele podia ser direto e negar o aumento pedido pelo capitão dos padeiros, mas esse jamais foi seu estilo. Reza a lenda que o alemão jamais havia dado uma ordem direta na vida, uma vez que sua paixão seriam os bastidores e a fritura lenta. E foi assim que, alegando que o salário de Frederico era muito alto, a Pãosócio acabou apoiando a saída do rei dos fornos, muito embora ele fosse o grande responsável pela conquista de novos fãs para a padaria e tivesse protagonizado a última conquista do título de melhor padaria do Brasil para a Fidalga. Não importava se o padeiro era genial e carismático. Não importava se os clientes, dos bebês aos velhinhos, amavam o sujeito. O dinheiro do salário de quem faz pão numa padaria não é importante. Para os gestores, o importante é construir o centro de treinamento dos padeiros mais limitados que iam continuar.
E assim foi feito: o melhor padeiro das últimas décadas foi dado de presente para um estabelecimento rival de Minas Gerais. Uma padaria que, diga-se de passagem, vivia falando mal da nossa. Mais uma vez, as pessoas que não entendiam o que estava se passando na Fidalga ficaram assustadas. “Por que mandamos Frederico embora e mantivemos no elenco padeiros veteranos, como Magno, e outros absolutamente inexpressivos, como Maranhão, Dudu e William Matheus? Juntos, eles ganhavam até mais do que Frederico. Sendo assim, Deus do céu, por que não nos livramos deles e mantivemos o favorito da clientela?”, perguntavam os opositores. “E desde quando cliente tem razão?”, rebatia a tropa de choque da Pãosócio, sem levar em conta que, até aqui, Frederico e Diego já fizeram mais gols do que toda a folha de trinta e poucos padeiros da Fidalga, que custa uma fortuna aos combalidos cofres da empresa.
É interessante notar que, se o problema da Fidalga era mesmo dinheiro, não haveria como explicar para seus clientes por que os gestores desprezaram os R$ 10 milhões de premiação para a melhor padaria do Brasil – ou mesmo dos R$ 6,5 milhões para a segunda melhor, ademais do orgulho que isso traria para os clientes. Sem Frederico e com o aprendiz de padeiro Maranhão na boca do forno, a Fidalga claramente abria mão da luta pela condição de melhor padaria do país e passaria a se preocupar apenas em não escorregar para a liga das padarias desqualificadas, mesmo sabendo que isso causaria perdas financeiras irremediáveis. E por falar em perdas financeiras, todos os clientes continuavam querendo saber onde foi parar o monte de dinheiro que entrou pela transferência dos jovens padeiros revelados na filial de Xerém para a Europa, entre eles os padeirinhos Gérson e Kenedy. Os clientes, esses tontos que nada entendem de gestão transformadora, sabem que jamais entrou tanto dinheiro na caixa registradora da Fidalga. Mas, ainda assim, se espantam ao saber que ela possui a quinta maior dívida total entre todas as padarias do Brasil. E todos têm a nítida sensação de que, para quem posa de arauto da transparência, o alemão não tem conseguido explicar bem as demonstrações financeiras da velha padoca. Um romance de James Joyce é menos complicado do que os relatórios da empresa.
Com tantas decisões inexplicáveis e tantas coisas por explicar, não houve como a bomba não explodir no salão do tradicional e simpático panifício das Laranjeiras. Com o caos instalado, a estratégia nada moderna do grupo gestor foi a de sempre: a difusão de boatos. A Pãosócio culpou o único padeiro que fazia a clientela crescer, Frederico, pela crise financeira na padaria. O gerente da padaria, dizem, logo vai tentar jogar a culpa no pobre do engenheiro que construiu no peito e na raça o centro de treinamento dos padeiros remanescentes. Exatamente como fez com quase todos os que passaram pela gestão da Fidalga nos últimos cinco anos: os dez caras que comandaram o marketing, os trinta diferentes treinadores de padeiros, as pessoas que contrataram o bom time de padeiros para o presente ano, embora devidamente desmontado para sanear as finanças, os padeiros, a fornecedora de uniformes dos padeiros, os patrocinadores da padaria, a federação dos padeiros, a confederação das padarias, e por aí vai. Todos eram fundamentais quando chegaram e não prestavam quando saíram. Todos eles foram os reais culpados pela crise que não se estanca. Todos, menos os geniais arautos da gestão moderna e transformadora, batizada de Projeto Padaria-Empresa. Para culminar, a Pãosócio tentou fingir que nada tem a ver com o alemão e lançou seu próprio candidato a gerente da Fidalga. No entanto, uma luz surge no fim do túnel: se os clientes da padaria estiverem insatisfeitos com o pão que comem no Brasil, poderão se deslocar para a Eslováquia, onde a formidável e moderna gestão acaba de abrir uma filial da padaria. A Eslováquia não tem tradição de fazer bons pães e nossos clientes não conseguem sequer sentir o cheiro do pão que é feito por lá, mas dizem que Jack Welch e outros gurus da administração têm um mandamento: se sua empresa está quebrada no Brasil, invista dinheiro para abrir uma filial na Eslováquia e tudo se resolverá.
A fábula acaba aqui, torcedor. Se o Fluminense fosse uma padaria, todos considerariam bizarras quase todas as grandes decisões tomadas por seu grupo diretor nos últimos anos. Ninguém entenderia como uma padaria poderia abrir mão de fazer o melhor pão para fazer outras coisas. Como somos um clube de futebol – e o futebol no Brasil se transformou em uma verdadeira crônica do absurdo –, ainda há quem ache que estamos diante de um maravilhoso caso de gestão inovadora, e que não há nada de mal em um clube de futebol desprezar os resultados do futebol.
Daqui a décadas ainda falaremos sobre como a troca do maior ídolo do clube no século por alguns tijolos e sacos de cimento foi o ponto de virada na percepção dos torcedores sobre a gestão pretensamente moderna que há anos vem destruindo o valor da marca do Fluminense e o orgulho de pertencer de sua torcida – esses, sim, os maiores patrimônios de um clube. Não que um centro de treinamento não seja importante, mas será que algum administrador financeiro sabe precificar uma foto como a que ilustra a coluna de hoje?
A saída de Fred escancarou o que é e o que não é legado na gestão de um clube, o que é conquista de verdade e o que não passa de politicagem barata. E se fosse só barata, eu poderia tentar conviver com ela. Mas a nossa política rasteira – e de contínuas rasteiras nos que tentam trabalhar por um Fluminense melhor – é bem pior do que barata: é apenas burra.