“As Laranjeiras pulsavam no ritmo de nossos corações. Quando tinha jogo lá, o estádio deixava de ser um monumento e ganhava vida”. Seu Antônio Castro, sapateiro por vocação, completou 55 anos no mês de abril. Frequentador de estádios desde a juventude, nunca ignorou a mitologia do Maracanã como palco de grandes partidas. Porém, assim como um filho que deixa a casa dos pais para viver uma aventura mundo afora, ele jamais se esqueceu das histórias de seu berço, a sede lendária do Tricolor. Mal sabe Toninho, como é conhecido no bairro vizinho, Botafogo, que o sonho aparentemente distante esteve diversas vezes, nos últimos anos, há alguns esforços de gestão para se tornar realidade. Diferente do que a diretoria faz crer, o bicho tem menos de sete cabeças, embora seja necessário percorrer um labirinto em prol da revitalização da nascente da seleção brasileira. Não existe conquista sem luta.
Uma das ideias esteve prestes a sair do papel ano passado, pensando na questão das entregas do Maracanã e do Engenhão para o Comitê Olímpico, nesta temporada. Para evitar ainda mais prejuízos de ordem financeira e deslocamentos intermitentes, o gerente de marketing do Fluminense, até então, Dilson Motta, convenceu o presidente da Maracanã S.A, Sinval Andrade, a estudar a possibilidade de uma parceria com o clube. A ideia era bem simples: diminuir o número de partidas de pouco apelo no Maracanã, que geravam muitos déficits, transferindo-as para as Laranjeiras. A reforma custaria em torno de R$ 10 milhões, e seria capitalizada pelo consórcio. Em contrapartida, as rendas dos jogos seriam repartidas meio a meio por um período de tempo não especificado. Tudo parecia se encaminhar razoavelmente bem, apesar do mandatário da empresa responsável em administrar o “Maior do Mundo”, em entrevista exclusiva ao NETFLU, admita apenas a realização de uma inspeção nas arquibancadas das Laranjeiras.
– A gente, ano passado, esteve lá nas Laranjeiras com alguns técnicos para analisar se tinha condições de restauração, mas não evoluímos nesse nível. Estavam querendo analisar a viabilidade de fazer a recuperação. Foi só uma análise. O nosso corpo de engenharia foi em apoio ao Fluminense. Teria que fazer uma recuperação estrutural para poder suportar. Também teria que ter o laudo dos bombeiros e uma preocupação com o entorno. Fizemos uma inspeção técnica. Inclusive identificamos uma empresa que fez uma proposta, mas não foi adiante. São vários laudos e licenças, impacto no trânsito, saída de emergência, capacidade. O Dilson (Motta) teve uma ideia desse tipo sim (de revitalizar as Laranjeiras para o mando de jogos de pequeno apelo), mas não andou o processo. A gente (o consórcio) nunca se meteu nisso diretamente – contou Sinval.
O projeto de reforma das Laranjeiras precisa ser feito de qualquer maneira. Pelo menos o anel superior das arquibancadas dos visitantes, que foi condenado pelos engenheiros da Odebrecht, deve ser revisto o quanto antes. O objetivo traçado no projeto – até hoje engavetado – era colocar “braços” metálicos e estruturar uma arquibancada superior menos íngreme e mais longa. O restante das obras focaria nos vestiários, acessos e adaptações de segurança. A estrutura atual, do portão da Rua Pinheiro Machado até o visitante colado à parte social, passaria por reformulações. O diretor de marketing do Maracanã, Marcelo Frazão, também estava a par das intenções do clube. O tombamento era o obstáculo menos preocupante, uma vez que as preocupações, em primeira escala, iam na direção dos laudos da Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, CET-Rio, tal qual a aprovação da Associação dos Moradores. Nada que não pudesse ser contornado em prol de um bem histórico não só do bairro, como do Rio de Janeiro. Um dos encarregados pela reestruturação da Sala de Troféus do Fluminense (também tombada), Ricardo Lafayette, que é conselheiro eleito do clube e trabalha como assessor parlamentar, deu diversos depoimentos salientando a chance real de tornar as Laranjeiras viáveis. Ele foi o redator, dentre outras coisas, do Projeto de Lei que tinha por intuito promover o destombamento das arquibancadas dos visitantes. Este, no entanto, nunca saiu do papel por falta de apoio do próprio Tricolor.
– Quando eu fiz a Sala de Troféus do Fluminense, tive a oportunidade de andar em toda a sede do clube, esmiuçar melhor como era o prédio. Fora o fato de trabalhar com o vereador Carlo Caiado desde 2005. A gente preparou o projeto de lei, que mexe na legislação municipal. Todo o conjunto da sede do Flu é tombado no âmbito municipal e estadual. Pela legislação estadual, tomba o conjunto arquitetônico. Em virtude dessas duas legislações e da lei federal que entrou em 2003, junto com o estatuto do torcedor, o Fluminense optou por não mexer mais no estádio. Achou que era impossível fazer qualquer modificação e simplesmente abandonou o estádio. Naquele momento, até eu achava que as coisas se encaminhariam para fazer essa mudança. Iniciei na Flusócio em 2007, participei da primeira campanha que o Peter (Siemsen) perdeu. Em 2010, ele se elegeu presidente e também participei. A sala de troféu tinha sido reformada no final da gestão Horcades, mas foi um fiasco. Então, o presidente pediu para ajudarmos. Fiz junto com o João Boutshauser. Quando a gente arrancou os carpetes da sala de troféus, descobrimos o piso original e o órgão (INEPAC – Instituto Estadual do Patrimônio Cultural) pediu para fazer a manutenção. Vimos, porém, que em nenhum momento o órgão era inflexível. Cheguei a tocar isso com o Peter, mas o Jackson (Vasconcelos, então gerente geral do clube) brecou um pouco na época. Eram necessárias medidas maiores. Sugeri ao presidente que mudasse a parte administrativa para um prédio que ficava há uma quadra do clube, podendo comprar um andar dele. Toda a parte administrativa poderia passar para lá, deixando a sede do clube, o que permitiria fazer as adequações que o estatuto do torcedor exige, como vestiários, além de melhoria na área de bares e banheiros. Daria para fazer uma reforma para 8 ou 10 mil pessoas lá em 2012. O mesmo poderia ocorrer com o projeto do Dilson, ano passado. Se a Sala de Troféus foi um sucesso, daria para tocar esse projeto, sem dúvidas. Sabíamos que o Peter conseguiria. Faltou, acima de tudo, vontade política – revelou, ao passo que teve seu depoimento endossado pelo vereador Carlo Caiado:
– O projeto está parado na Câmara há vários anos. Meu intuito foi ajudar o clube, já que só apresentei-o atendendo pleito do Fluminense. Fui Conselheiro na primeira gestão Peter e meu assessor Ricardo Lafayette foi quem deu redação ao Projeto de Lei – confirmou.
Responsável por ter trabalhado diretamente na Sala de Troféus, a partir de indicação de Lafayette, Ana Frazão, que tem mais de duas décadas de experiência exercendo a função junto ao principal órgão do estado no que diz respeito a tombamento, corroborou com as palavras do conselheiro e assessor parlamentar. Vivendo, coincidentemente, numa residência também tombada pelo instituto, a profissional destrinchou os caminhos que poderiam ser percorridos pelo Fluminense.
– Apresentar um projeto para o INEPAC não é algo simples. Precisa ser bem feito, senão volta. Tem que contar qual a razão do projeto, explicar o destombamento. No caso da sala de troféus, não teve destombamento, apenas uma adaptação. Tudo o que foi feito, eles acompanharam as prospecções e, aos poucos, foram sendo apresentados para o órgão. Sobre as arquibancadas, não tenho certeza se seria autorizada, mas também não sei se negariam, nem quanto tempo todo o processo levaria. O que eu percebo neste caso é uma questão das relações humanas, principalmente, a parte política. Talvez tudo isso influencie. Talvez, se o Fluminense apresentar as razões pelas quais precisa fazer, acredito que possa conseguir sim. Só não sei te dizer quanto tempo, nem se seria aprovado. O Theatro Municipal conseguiu algumas aprovações recentemente, por exemplo – explicou.
De acordo com Ana Frazão, um argumento fundamental para o Fluminense conseguir ser levado a sério e ter a ideia abraçada pelo instituto é o de provável “abandono” do estádio, uma vez que, a partir do segundo semestre, o time principal passará a fazer suas atividades no centro de treinamento, localizado na Barra da Tijuca. Uma proposta bem amarrada, pontuando toda a importância do espaço, seja histórica ou culturalmente falando, costuma sensibilizar o INEPAC.
– Para uso de um estádio tem que ter isso e aquilo outro, muitas regras, acredito. Esse tipo de argumento é ótimo (do estádio ficar às moscas), porque eles aceitam. Sei disso porque trabalho num prédio tombado e eles facilitam sim. Talvez não um destombamento, mas uma reutilização do espaço. Tudo depende do projeto, tem que ser bem feito. Alterações que envolvam a segurança, de novas exigências. Indo por aí, é mais fácil. Tem que ter boa vontade do clube para conseguir que isso vá adiante. Já aconteceu isso também de levar coisas ao INEPAC e o clube vetar (na época da restauração da Sala de Troféus). Precisa ser muito bem conversado, deixando clara as intenções. Se a própria diretoria não está de acordo, é mais difícil. Esses órgãos de tombamento pedem coisas que não sejam irreversíveis. Nesse caso de alterações, só é possível quando é um motivo muito forte. Isso (o fato da Odebrecht ter condenado o anel superior) também é outro motivo muito importante. Tem que levar ao estudo deles para chegar à conclusão e aprovar ou não. E se não aprovar aquele projeto, outro pode ser aproveitado. Ou, então, readaptado – destacou.
Imagine se seu Toninho soubesse que o próprio clube, baseado nos relatos supracitados, tendo diversos argumentos plausíveis nas mãos, não utiliza isso a seu favor? Sem ter como acompanhar o Tricolor em praças diversas, como ocorre hoje em dia, Antônio vem se acostumando ao sofá marrom da sala de seu pequeno apartamento, tão antigo quanto o último título conquistado pelo Flu, nas Laranjeiras, no início da década de 90.
Pagando quase R$ 2 mil de aluguel, fora as despesas com condomínio, o torcedor ainda tem dificuldades de entender, mesmo com a existência do Maracanã, as razões que levam um grande clube como o Fluminense a não lutar pelo seu lar. Na certeza de que a casa própria é o sonho de todo brasileiro, ele não aceita que as Laranjeiras não sejam uma ambição – não só com palavras, mas com atitudes – do clube atualmente. É preciso perseverar.
– Eu vi de perto o gol do Wagner, na Taça Guanabara de 93. Tinham quase 10 mil pessoas no estádio, estava tudo lindo. Chego a me emocionar quando me lembro dos detalhes, pó-de-arroz, cantoria. Inventam de jogar em estádios como o do América, do Bangu, do Volta Redonda, porque não devem ter sentido o que eu senti naquele dia. Não deve ser uma tarefa tão complicada assim. Tinham que lutar dia após dia por isso, até porque ainda é um gasto a mais sair daqui, pegar trânsito, avião e perder horas de descanso – desabafa o torcedor nostálgico.
Toninho tem razão. Só com a reforma de Edson Passos, o Fluminense deve gastar cerca de R$1 milhão num espaço que será seu temporariamente. Para dar voz às lamúrias do torcedor, basta analisar, ainda, os trajetos feitos pelo Fluminense nas primeiras duas competições que participou na temporada. Enquanto que no Carioca, em oito jogos como mandante, o Time de Guerreiros percorreu 9.100 km, onde havia apenas equipes do Rio na disputa, na Primeira Liga, em quatro partidas como “dono da casa”, os jogadores encararam 2.647km. Somadas, as marcas dão um total de 11.747km, equivalente a uma viagem do Rio até Moscou, capital da Rússia. Tais deslocamentos já foram longamente abordados por membros da comissão técnica e atletas, reclamando das dificuldades em poder descansar. Os números são mais assustadores se for levado em conta que o Fluminense passou mais de 1/3 dos dias, desde a primeira partida oficial da temporada, em ônibus, avião ou concentração. Em tempos como estes, espera-se que a vocação para a eternidade do Tricolor não esteja no âmbito de espera quando o assunto é um lar para chamar de seu.
– Seria muito bom mandar jogos nas Laranjeiras. É perto, é um estádio histórico, então a torcida compareceria em peso. Seria muito bom para o Fluminense. É outro assunto que acaba desgastando muito a gente, seja fisicamente, nas viagens ou até nas perguntas. Espero que eles resolvam esse negócio de estádio e que consigam um mando de campo próximo o mais rápido possível – concluiu Scarpa, quando questionado pela reportagem do NETFLU, em entrevista coletiva realizada no mês de abril.