A Segunda Guerra Mundial talvez tenha sido o último conflito no qual o bem o mal se diferenciavam claramente. Logo após a vitória dos aliados, se difundiu pelo mundo uma espécie de regra para as histórias de ficção: qualquer que fosse o enredo, o final teria que ser escancaradamente feliz. No cinema, a regra dos finais felizes foi levada às últimas consequências. Entre a segunda metade dos anos 40 e o início dos anos 60, filme bom era o que tinha muito sofrimento no meio, mas lágrimas de emoção, música de violinos e beijos apaixonados no final. E, se o final não fosse feliz, o filme não prestava. José Werneck Franco, meu avô materno, era um admirador desses enredos otimistas. Mesmo quando ele não conseguia acompanhar o desenrolar da história de um filme, prestava atenção no desfecho, apenas para conferir se as coisas terminavam bem. Quando o mocinho prendia o bandido, beijava a mocinha sob o pôr-do-sol e coros jubilosos invadiam a sala, vovô suspirava, num misto de satisfação e ironia, e dizia: “Tudo certinho…”.
Os anos 60 chegaram para mostrar que o bem e o mal não eram mais tão distinguíveis e, desde então, os filmes com final feliz escassearam. Nos dias de hoje, filme bom (ou série boa) tem que ter um herói que é meio bandido ou um bandido que é meio herói, sabe-se lá. E se por acaso topamos com uma história com final feliz, imediatamente a tachamos de previsível, tola ou brega. Não vivemos mais tempos de James Stewart ou Cary Grant. Os homens de nosso tempo são Tony Soprano, Walther White, Don Draper – e até os super-heróis têm brigado entre si. Fiel às tradições de meu avô, devo confessar que, embora curta uma boa série como Sopranos, Breaking Bad e Mad Men, ainda tenho grande afeição pelos finais felizes. E acho que, no mundo do futebol, o ano de 2016 do nosso adorado Fluminense tem boas chances de terminar como as palavras do meu avô: tudo certinho.
Em primeiro lugar, precisamos considerar que, como alguém já disse, a felicidade é uma ilusão. O que existe são diferentes níveis de infelicidade relativa. Ainda mais no futebol. Se o Flu ganhar a Copa da Liga e um dos nossos rivais for campeão brasileiro ou da Copa do Brasil, não poderemos dizer que o ano foi muito feliz. Por outro lado, se a nossa temporada for apenas tranquila, mas nossos antagonistas derem um belo passeio no inferno, é inegável que exibiremos um sorrisinho no canto da boca. É por isso que, sob a ótica dessa felicidade relativa, a temporada pinta como muito boa. O Flamengo conseguiu a façanha de ser eliminado na Primeira Liga para um time da Série A, no Estadual para um time da Série B e na Copa do Brasil para um time da Série C. Sendo que a eliminação na Copa do Brasil aconteceu duas fases antes das oitavas de final, ou seja, naquilo que eu batizei de trintaedoisavas de final. Um vexame. O Botafogo, por sua vez, confirmou a condição de sparrring do Vasco no Estadual e tudo leva a crer que brigará apenas para não cair no Brasileirão, como tem acontecido nas últimas décadas. Já o Vasco, após a conquista do Estadual da Ferj, reeditando a era de ouro da dupla Eurico-Caixa D’Água, está agora condenado a cumprir o longo martírio na Série B.
Só que o Fluminense tem mais a celebrar do que apenas a desgraça alheia. Começamos o ano com um título que a história se encarregará de valorizar – a Primeira Liga – e conseguimos montar um time muito mais equilibrado do que o do ano passado. Logo de cara, limamos do elenco jogadores contratados a toque de caixa no início do ano passado, no rastro do desespero causado pela saída da Unimed, que muitos juraram que seria o sopro da morte para um rebaixamento e acabamos evitando. Por outro lado, conseguimos reforços pontuais que mesclam, como é sempre recomendável, juventude e experiência. Henrique, que está se firmando aos poucos, é um zagueiro com experiência de Seleção Brasileira e boa saída de bola, formando boa dupla com Gum (que virada esse nosso já histórico zagueiro conseguiu dar este ano!), que é melhor no jogo aéreo. Para o ataque, a chegada do garoto Richarlisson nos dá esperança de contar com alguém talentoso e veloz como o saudoso Wellington Nem. Com a vantagem de, ao contrário de Nem, ser capaz de jogar enfiado na área. Bem trabalhado, ele pode ser um nome para a sucessão de Fred, daqui a alguns anos, quando o capitão decidir se aposentar. Outro reforço que tinha tudo para encaixar bem, Diego Souza, não se adaptou à pressão e preferiu voltar para a zona de conforto, no Sport. Uma pena, mas vida que segue.
Além dos reforços pontuais, os jovens do elenco, especialmente Scarpa, estão mais rodados e adquirindo ares de protagonista. É preciso destacar ainda que vários veteranos subiram de produção, caso não apenas de Gum, mas também de Wellington Silva, Pierre, Edson e o próprio Fred – que desde a chegada de Levir, rusgas à parte, tem se movimentado mais e participado das ações em todos os setores do campo. É curioso constatar que, mesmo incluindo os dez jogos de seca de gols na contagem, Fred marcou nada menos do que sete gols nos últimos 14 jogos. Eu gostaria muito que alguém citasse outro centroavante no Brasil que, em sua pior fase, ainda consegue ostentar uma média de meio gol por partida. Da mesma forma, duvido alguém lembrar de um atacante que, ao longo de oito temporadas em um clube brasileiro, tenha apenas dez partidas como recorde de sequência sem gols. Recordo que Jô ficou nada menos do que um ano sem marcar, após a Copa, e mesmo assim foi mantido pelo Atlético Mineiro. Esse exagero estúpido em relação à seca de Fred – pelo menos uma matéria por dia sobre o assunto, todos os dias, em todos os sites esportivos – só mostra a estatura do nosso camisa 9, o maior artilheiro da história do clube em jogos oficiais. Se o torcedor tricolor fosse mais esperto, não entraria nessas pilhas erradas.
Outro ponto positivo: Levir Culpi tem uma proposta audaciosa de jogo, estilo que ficou conhecido como “Galo Louco”, de fazer o time jogar no ataque mesmo fora de casa. Eu gosto bastante dessa filosofia. Não apenas porque sou um amante do futebol ofensivo, mas porque sei fazer contas. E, como sei fazer contas, posso garantir que se ganharmos apenas 30% dos jogos fora de casa marcaremos 17 pontos, quase o dobro do que conseguiríamos com empates em metade dos jogos como visitante. Além do aspecto matemático, um time que joga como grande fora de casa, em casa se torna gigante. Psicologicamente, é sempre melhor a atitude da busca incessante da vitória. Com postura, mesmo quando a derrota vem, ela é percebida como algo injusto ou um preço que foi pago pelo atrevimento de se sonhar grande.
Por falar em sonho grande, a conclusão de tudo isso deveria ser óbvia: se dedicarmos ao futebol – que é a razão de ser e o sobrenome do nosso clube – a mesma energia que temos dedicado a coisas como finanças, negociação de cotas de televisão, contratos de fornecimento de material esportivo, construção de centro de treinamento e campanhas eleitorais no clube, temos tudo para garantir um título ou pelo menos uma vaga na próxima Copa Libertadores da América. Peter Siemsen recebeu o clube na condição de campeão brasileiro de futebol. No lugar dele, acima de qualquer outra coisa, eu cuidaria para que a comissão técnica e os jogadores tivessem todo o suporte e absolutamente todas as condições para a conquista do pentacampeonato nacional e/ou da Copa do Brasil. É hora de ir a todos os jogos, acompanhar todos os treinos, cuidar do clima do vestiário, ter toda a habilidade do mundo para negociar premiações, administrar mesmo as menores crises e trabalhar duro para contratar os reforços que precisamos.
Um grande título: isso sim é um legado. O resto é importante, sem dúvida. Mas, para a imensa massa de torcedores de um clube de futebol, nada pode ser mais importante do que o dito cujo.