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Em 26 de novembro que se achega, os sócios habilitados a votar sufragarão o próximo presidente do Fluminense. Infelizmente, muitos dos sócios habilitados formalmente a votar não poderão fazê-lo, já que não estarão de corpo presente em Laranjeiras nesse dia. Corpo presente é requisito de missa de Latim, quando ainda nos movíamos tocados a jumento e vestíamos terno pra jantar ou dar um cheirim na namorada escoltada no sofá por olhares vigilantes de pais não menos. Hoje em dia é exigência arcaica, descolada de nossa realidade diária, em que se compra, vende, aluga, e até se abre cortina, apaga luz e espia o que deve e não deve por um celular de trezentos contos. Esses tricolores que não poderão participar da escolha de quem decidirá por boa parte de sua felicidade nos próximos três anos são torcedores apaixonados do Brasil inteiro, quem sabe ainda mais apaixonados que muitos eleitores que moram por aqui. São tricolores que responderam ao apelo do projeto Sócio-Futebol mas estarão alijados de um processo cuja amplitude democrática foi um dos bons feitos da atual gestão. Avançou-se na medida, recuou-se no rito. Não declino voto, apenas registro a importância do que se vai decidir e minhas preocupações. Toda eleição no Fluminense tem o significado simbólico de um reencontro com nossa vocação original – a eternidade renovada -, e com o ideal de nossos fundadores. Nesse instantâneo temporal, o secular e a tradição se encontram com o fim único de a segunda ressubmeter o primeiro. Dia de bater ponto no que construímos ao longo de uma história única. Pra mim, dia também de lembrar de pais e filhos. E começo em casa, por meu pai.

 
 
 

Meu velho pai, que já não está a meu lado, não era muito de gostar de futebol. Ainda em Salvador, nos anos 30, andou fazendo umas incursões como meia-esquerda do Colégio Padre Antônio Vieira e houve até um professor que, num rasgo de generosidade, sugeriu-lhe fazer uns testes no Galícia. Meu pai fez bem em não seguir a sugestão do bondoso mestre. Seguiu as letras, e lá foi muito bem, deixando à literatura brasileira um legado de mais de trinta livros publicados e pelo menos umas sessenta edições no estrangeiro. Menino pobre, chegou à Academia Brasileira de Letras e ganhou o mundo sem jamais abdicar de sua alma interiorana. Orgulho-me muito dele, e sua lembrança, se vem acompanhada da tristeza de sua ausência, vem também ponteada de bonitas recordações, tais as que em mim marcaram sua retidão de caráter e honestidade.

Afora essa tímida experiência adolescente, meu pai se desinteressava por qualquer esporte, limitando suas preocupações a eventuais disputas de final de Copa do Mundo, quando apenas perguntava a minha mãe: – “E aí, quanto é que está o jogo?”. Nutria uma simpatia discreta pelo América, uma homenagem a seus amigos João Cabral de Mello Neto e Marques Rebelo. Um carinho protocolar e solidário pelo glorioso “Diabo do Andaraí”, sendo a Andaraí do subúrbio carioca, aliás, xará de sua terra natal, um pequeno município encravado ao sopé da Chapada da Diamantina.

Pois bem, o desinteresse de meu pai pelo futebol foi bruscamente interrompido pela minha paixão doentia pelo Fluminense, que aprendi a amar ainda cheirando a mijo, fixando com cola de farinha de trigo as figurinhas de meu álbum em 1959. A estampa de um rosto anguloso e estreito de um ponta-direita que impressionava por sua forma discreta e inteligente de jogar futebol vinha sob o carimbo que conferia à figurinha uma importância destacada. Tratava-se de uma figurinha carimbada do Telê Santana, que providencialmente completara minha página predileta, linda em suas três cores.

A partir da paixão avassaladora de seu caçula-temporão pelo Fluminense, meu pai passou a se interessar pelas idas e vindas do mais tradicional clube brasileiro, já que os embora raríssimos insucessos desse clube faziam com que me tomasse de uma depressão mórbida. A ameaça de meu sofrimento iminente impediu que o velho desse de ombros como gostaria ao mundo estranho do torcedor compulsivo que se lhe revelara em seu filho, ainda que jamais cometesse o exagero de ir a um estádio. Assim, ia eu com meus amigos, ou com pais de meus amigos. Nunca tive o velho ao meu lado no Maraca para dividir o êxtase ou a dor. Mas encontrava-o em casa para solidariamente perguntar-me sobre o jogo. Nunca o culpei por isso, pelo contrário. Sabia que só o fato de ele demonstrar interesse por algo que lhe sugeria um tédio oceânico já significava para mim a prova de seu amor. O Fluminense operara assim mais um milagre: tocou o coração do velho patriarca nordestino. E tocando seu coração me aproximou pela via oblíqua do destino do mesmo velho que se fez amigo querido do menino que talvez fosse levado a nutrir por ele apenas um amor respeitoso. Quando ele se foi, o imenso vazio foi atenuado por essa carinhosa lembrança.

Tenho sete filhos. Em um turno de três e returno de quatro, separados por uma geração. Três deles, os mais velhos, entre os trinta e trinta e nove, beneficiaram-se em parte da mística vitoriosa do Fluminense. Nunca deixei de levá-los aos estádios onde estivesse o Fluminense jogando. O mais velho e a do meio, tocados pela histeria midiática da onda “Zico”, resistiram bravamente e conquistaram a alegria indescritível de ser tricolor. Ajudou-os o tri estadual e o Brasileiro de 84, que não pegaram em boa idade, mas cuja lembrança ainda era recente. O caçula da primeira leva nem isso teve. Só pegou pauleira. E mesmo assim não decepcionou seu pai. Dos quatro mais novos, três são habituês do Maraca e amigos de muitos de tricolores que na fé se tornam irmãos também. Nasceram a partir de 95, em plena Era das Trevas. Três criaturas maravilhosas em sua inocência pura e em sua revelação diária de seus gostos e vocações. São tricolores por obra e graça da influência divina e de minha dedicação diária. Conto e reconto para eles histórias de um Fluminense que era exemplo para o Brasil e para o mundo, de um clube diferenciado, comprometido com uma mentalidade vitoriosa e que jamais baixou a guarda. Desafinou muitas vezes o coro dos contentes e até a vontade do poder, quando um general déspota instalava-se na tribuna do Maracanã com um radinho colado no ouvido para fazer média com a massa ignara, rubro-negra, é claro. Já o Miguel, meu caçula, é um tricolor por encomenda em seu pouco tempo de ponto neste mundão de Deus ou de quem seja. Para esses quatro foi um pouco mais fácil, dois campeonatos brasileiros em três anos, vacas gordas.

Ando pensando sobre o quanto de expectativa tenho criado para esses quatro agora adolescentes, aliviando sempre seu recente sofrimento nas derrotas com o brilho da promessa. Qual é o Fluminense que legarei para meus filhos? A eterna e imensa instituição que escreveu para sempre a história do futebol seis vezes campeão do mundo, ou uma lembrança castigada pela incúria e pela negligência, uma lenda amorfa, uma gaveta da memória cheirando à naftalina? Se hoje não somos o que fomos, estamos felizmente a uma segura distância do que nos traumatizou há tão pouco tempo. Não há motivo algum para se recolher no medo a cada decepção, ainda que a dor da derrota de ontem tenha a extensão de um baque irrecuperável. Muito já se escreveu sobre o caráter pedagógico da derrota, mas se fôssemos – os humanos – equipados apenas para metabolizar tristezas, teríamos permanecido nas cavernas sorvendo morcegos e renunciando aos encantos de um bom livro, de um ovo frito e de uma picanha mal passada. Há muito ainda o que consertar no Fluminense de nossos dias, muito que provê-lo de sustentação para a travessia penosa para a autossuficiência que o permitirá cravar-se de vez na elite do futebol brasileiro, naquele seleto grupo que vem se alternando na conquista dos títulos importantes e redesenhando uma nova hierarquia esportiva.

Eu não tenho opção. Não posso deixar morrer o Fluminense para a geração dos meus filhos. Eu me recuso privá-los de uma das melhores sensações existenciais que experimentei e experimento em vida, que é ter o Fluminense em cada canto de meu quarto, em cada molécula do ar que respiro, em cada esquina que atravesso, no topo de meu Olimpo particular. O Fluminense me deu muito mais que pedi, já que me bastaria apenas sua existência. Ele – e parte importante do futuro afetivo de meus filhos – anda precisando muito de mim, de cada um de nós. Estamos, apesar de tantos percalços e erros monumentais, a caminho de um marco em nosso itinerário de reconstrução: a volta à Libertadores. Ainda que castigado pela ação sistemática da incompetência, da arrogância de cartolas de paróquia, o Fluminense soube e saberá sobreviver a tudo, se mudar a tempo. Ao olhar nos olhos de meus filhos e reconhecer neles o amor que não cobra nada mais que minha honestidade afetiva, vejo-me comprometido com o futuro do Fluminense. E não se renuncia a empresa dessa monta nem pela via do amor nem pela via da indignação. É um dever da paixão, tarefa de sobrevivência, já que me seria estranho viver uma vida cuja essência lhe fosse retirada a fórceps.

O Fluminense Football Club, o Fluminense que importa, pulsa no coração e alma de milhões de pessoas mundo afora. Esse Fluminense se construiu e se manterá por seu valor imaterial, intrinsecamente ligado a seu motivo vital, sua razão de existir, o futebol. O Fluminense eterno não admite restrições físicas ou tutela ideológica. Não cabe em lugares nem em convicções. O que se renovará nos próximos dias é apenas o Fluminense-governo, insignificante diante do Fluminense-estado, deificado pela fé e paixão, cujas bases éticas, morais, e compromissos, vão muito além das intenções de inquilinos transitórios. O que estará em jogo não é nossa mística, pois essa resistirá sempre a toda forma de iniquidade. O que estará em jogo? O que queremos para nós nos próximos três anos. E isso, bom lembrar, depende ainda da manifestação de centenas de associados que se resumem a defender interesses proverbiais de um sócio de clube de bairro, que não têm com nossa mística e amor o menor grau de comprometimento.

Conforta-me saber que dispomos da essência do que precisamos para voltar a fazer grandes campeonatos, brigar por todos os títulos: nós, tricolores. Se acertarmos na escolha das pessoas a quem caberá a reconstrução, ficaremos muito fortes para colher num solo há seis anos árido, próximo do estéril. Cabe-nos virar a página de insucessos persistentes e retirar dela o ensinamento que nos evitará revisitá-la com frequência.

O resto, deixa com a gente; nós e a mística do Fluminense daremos conta.