“Ora, esse número infinito de loucos compreende todos os homens, com exceção de uns poucos, e duvido que alguma vez se tenha visto esses poucos“.
(Eclesiastes)
“Todas as coisas humanas têm dois aspectos… para dizer a verdade todo este mundo não é senão uma sombra e uma aparência; mas esta grande e interminável comédia não pode representar-se de um outro modo. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos nos assegurar de nenhuma verdade”.
(Erasmo – Elogio da Loucura, 1509)
Havia em Mury, um lindo burgo serrano no Rio onde morei por dez anos, um hospital psiquiátrico de nome Santa Lúcia. Não é incomum hospitais psiquiátricos chamarem-se Santa Lúcia. A mártir, que renunciou às delícias da nobreza para dedicar sua vida aos pobres, é a santa protetora dos olhos, que são as janelas da alma, o caminho da luz. Daí a homenagem recorrente.
Pareceu-me sempre um hospital simpático. Há sobre ele histórias adoráveis e obscuras. As adoráveis podíamos atestar vez em quando, já que o sanatório ficava na beira da estrada, de onde víamos as quermesses, as oficinas de arte, as feiras de artesanato, as atividades esportivas, as festinhas e brincadeiras. As obscuras, bem…as obscuras, vamos deixar pra lá. Deus sabe o que se passa em casas de repouso quando a noite com seu véu sombrio cobre a realidade de mistérios. O sanatório albergava uma padaria de nome e pão deliciosos: Miolo Mole. Simpático, não? Entre as atividades que os internos costumavam realizar, uma é a caminhada diária, sempre lá pelas sete, oito da manhã. Caminhavam em grupo, guiados por dois ou três enfermeiros e por um professor de educação física. O trajeto, invariavelmente o mesmo: dois ou três quilômetros pelo arremedo de rua que serviu um dia de leito para a estrada de ferro que ligava Friburgo ao Rio. Atacada ferozmente pela fome insaciável do lobby do petróleo, com suas empreiteiras a fazer rodovias que sustentariam caminhões queimando óleo, nossa malha ferroviária foi destroçada, a mutilar o grande enredo das histórias de amor brasileiras, muitas vezes alimentadas por saudades que começavam por singelos gestos de adeus de moças com vestido de chita nas velhas e românticas estações espalhadas pelos grotões deste continente tropical. Deu no que deu. Filas quilométricas de supercarretas que ficam dias a esperar numa ponta o carregamento de soja e na outra o descarregamento em portos a milhares de milhas dali. E tome petróleo e aquecimento global. O pior: nossas mocinhas sem estação para abanar seus lenços de saudade.
Voltemos aos nossos carteirinhas 22, porque dos loucos socialmente reverenciados já há os que tratem deles. Dizia eu que os malucos do Santa Lúcia caminhavam diariamente pela antiga estrada de ferro, coincidentemente o mesmo trajeto que fazia duas ou três vezes por semana. Eles, andando ao seu jeito, muitos no mover pendular; outros em zigue-zague; alguns olhando para o chão; não poucos a cuidar de conversar consigo mesmo, como os que vemos às pencas na avenida Rio Branco, de terno e gravata, em pleno Rio de Janeiro, a ruminar temores de cartões de crédito vencidos. Eu ia caminhando naquele ritmo marcial que agrada aos cardiologistas mas nos faz patéticos. Cumprimentava-os sempre. E não raro proseava com uns e outros. Tenho um interesse especial pela loucura. A loucura atemoriza a muitos por capturar e trancar o universo lúdico que gostamos vez em quando de visitar, desde que munidos da providencial chave da porta de saída. Já tive medo. Hoje, com os cada vez mais freqüentes lapsos de memória que me fazem duvidar do que vivi e imaginar vivido o que delirei, tenho menos medo e mais interesse solidário. No grupo dos malucos de Mury havia uns simpáticos, com arzão de gente-boa. Um deles, sem jamais deixar o ar conspiratório que dá respeito e gravidade ao assunto de que trata, se aproximou de mim uma vez e me alertou sobre os perigos que encontraria pelo caminho, repleto de bichos estranhos que produzem urros ainda mais estranhos, e de gente má, que arrasta corrente e ameaça os incautos que por ali se encorajassem em empreender sua caminhada matinal. Outra, que ainda carregava traços de beleza adulterados pela crueldade da doença, me dizia e redizia que desejava namorar, sem ser correspondida, com um mulatinho de seus 25 anos que vinha sempre atrás, com visíveis traços de disfunção cerebral. Em geral, apenas os cumprimentava, e recebia de volta uma efusiva resposta. Aquela troca conferia ao ritual um tom de contentamento.
E assim seriam todos os dias não fosse uma certa segunda-feira, um dia após um jogo em que o Fluminense completara cinco partidas sem vitória e vinha despencando na tabela do Brasileirão. À cena emprestara-se algo inusitado: um jovem senhor, lá pelos 50 anos. Pensei inicialmente ser mais um enfermeiro, ou mesmo um guia recém-admitido, mas logo percebi que era mesmo um interno. Usava uma camisa tricolor – e quem usaria uma camisa tricolor após aquele domingo fatídico senão um louco? Foi quando reparei que também eu estava com uma camisa tricolor. O maluco veio em minha direção e começou sussurrando, subindo o tom até chegar aos berros: – “É campeão, é campeão!”. Fui receptivo, e o estimulei lembrando-o de grandes conquistas tricolores, e para cada uma recebia de volta o bordão “é campeão, é campeão”. Nisso se aproximou um dos guias e educadamente o levou para o grupo, que já se adiantara em sua bizarra marcha de almas desencontradas. Pediu-me desculpas, o que não precisaria fazê-lo. Tratei de completar minha caminhada e fui para casa. Impressionado.
Não sosseguei um minuto pelas vinte e quatro horas que separaram minha estranha experiência daquela manhã da caminhada do outro dia. Minha única concessão foi ouvir um mp3 de rock queimado pelo Gustavo Valladares, garantia de som pesado e guitarra enguiçada. Mas nem ouvindo, entre outros, Eric Gales, Gov’t Mule, Indigenous, Doyle Bramhal II, Cactus, Stevie Ray Vaughan e Jeff Healey, aquele maluco tricolor, a quem chamarei Erasmo, saía da minha cabeça. De manhã, frustrei-me por não cruzar com a procissão de doidos no trajeto de sempre. Ao completá-lo, porém, fui ao Santa Lúcia, movido por uma irresistível curiosidade. Indaguei pelo médico que porventura supervisionasse o tratamento do já meu amigo tricolor, e me informaram que o doutor por lá estaria apenas no dia seguinte. O que fiz no dia seguinte? Fui ao Santa Lúcia e esperei algumas horas pelo jovem psiquiatra, cujo nome vou manter em segredo por não ter razão em decliná-lo. Nomes só cumprem o papel de nos selar socialmente, e regra geral corrompem a idéia que podemos fazer uns dos outros. Surpreendido por minha curiosidade, o compenetrado discípulo de Freud deu início a uma longa exposição, da qual vou retirar os acessórios, cravando o que deve ser cravado:
– Senhor Beto, o Erasmo (ele concordou em chamá-lo de Erasmo a meu pedido) sofre de Transtorno Obsessivo Compulsivo. É uma síndrome que se caracteriza por obsessões e rituais compulsivos. As obsessões são idéias ou imagens persistentes que vem à mente da pessoa independente de sua vontade. Embora a pessoa saiba que são idéias sem sentido, não consegue evitá-las. São freqüentes idéias relacionadas a contaminação (por exemplo, a pessoa tem o hábito de lavar as mãos a todo momento acreditando que estas estão sujas), agressão ( acha que será assaltada, ou vítima de algum tipo de violência), religião (idéias fanáticas) e dúvidas, muitas dúvidas (freqüentemente faz a mesma pergunta várias vezes). As compulsões são atos ou rituais que o indivíduo não consegue deixar de executar acreditando que assim aliviará suas obsessões. Se a pessoa não executa o ato compulsivo, ela fica muito ansiosa. No caso do Erasmo, vou chamá-lo também assim, há um componente agravante: a esquizofrenia. Ele vive uma realidade criada defensivamente por sua obsessão em ver o Fluminense campeão…
– Como?!!
– É, senhor Beto, é isso mesmo. É comovente, e mais comovente ainda para mim, que sou tricolor também.
– Mas…quando é que começou esse troço? Quer dizer…desculpe, essa síndrome?
– Foi em 1990. Desde 69, o Erasmo acompanhava o Fluminense onde quer que o Fluminense estivesse. Completamente fanático. Se o jogo fosse fora do Rio, caso em que muitas vezes não podia estar presente, colava o ouvido no rádio em transe total. Se televisionada, a partida impunha à casa onde vivia com mulher e dois filhos uma rotina espartana. Ninguém podia abrir a boca ou esboçar o mais simples movimento quinze minutos antes de a bola rolar e quinze minutos depois do apito final. Acostumou-se a ganhar seguidamente títulos, e esse ganhar produzia nele um certo êxtase químico, como o efeito dessas drogas que tanta gente anda consumindo por aí. O hábito da vitória provocou-lhe dependência química, uma nova síndrome que nomeei com a sigla DQV, Dependência Química de Vitória. Trata-se de doença rara, mas a propensão se dá pela abstinência. Em 1990 o Fluminense completara cinco anos sem títulos, o que para um DQV tricolor é mortal, já que o raro hiato de vitórias provocara-lhe baixa de adrenalina. Para um botafoguense é tranquilo, os sintomas só aparecem com abstinência superior a vinte anos, mas para um tricolor cinco anos são uma eternidade. Não custou muito a DQV manifestar-se: durante um proverbial almoço de sábado, tudo transcorria normalmente até que o Erasmo tomou nas mãos o prato de espaguete à bolonhesa e empurrou-o contra a cara, jogando-o em seguida para o alto. Ato contínuo, passou a gritar freneticamente: – “É campeão, é campeão!”. Obviamente, senhor Beto, a mulher do Erasmo estranhou. Pensou, no entanto, tratar-se algo episódico. Uma semana depois do primeiro ataque, o filho mais velho do Erasmo precisou de uma chave-de-fenda, no que recorreu à caixa de ferramentas que seu pai guardava ciosamente em uma pequena oficina nos fundos da casa. Ao entrar no quartinho de trabalho do pai, o rapaz tomou um susto. Todas as paredes, sempre mantidas em um branco imaculadamente branco, estavam repletas de garranchos. Ao se aproximar para tentar decifrá-los, percebeu que nem todos eram ininteligíveis. Alguns reproduziam nomes que lhe eram familiares: Castilho, Telê, Manfrini, Romerito, Rivelino, Assis e outros. Os nomes estavam sempre sob frases escritas desconexamente, mas que deixavam claro tratar-se de dedicatórias. Ao contar à mãe o que vira e convocando-a a testemunhar o cenário bizarro em que se transformara a oficina do velho, ambos, mãe e filho, constataram estar diante de algo muito grave. De lá para cá foram várias e várias internações, com o quadro se agravando à medida que o Fluminense prolongava seu jejum, até que ocorreu o trauma de conseqüências irreparáveis, a terceira divisão.
– Mas doutor, sei que o senhor é tricolor, a terceira divisão foi nossa Tragédia de Kerbala, nossa escravidão no Egito, nossa crucificação. Todas as religiões monoteístas se baseiam em um livro, um profeta e um sacrifício. Por isso são imensas, globais. Nosso profeta foi Oscar Cox, nosso livro, a ata de 1902, e o nosso sacrifício, a terceira divisão. Renascemos ainda muito mais fortes, nenhum grande time do mundo se reconstruiu de seus escombros como nós nos reconstruímos. Não é por outro motivo que somos muito mais imensos que todos os outros, os únicos eternos, como as almas dos profetas.
– Boa tese, Beto, até concordo com ela. Mas o Erasmo, já portador de DQV, ficou fragilizado, não suportou aquela noite fatídica. Foi muito grave. Erasmo foi forçado a isolar-se do convívio social e mergulhou de vez no mundo esquizofrênico da construção defensiva da vitória tricolor. Nada mais lhe interessava no mundo vivido, já que em seu mundo o Fluminense ganhava e ganhava e ganhava. Senhor Beto – já em tom mais formal – é esse o homem que tanta atenção lhe despertou.
– Pelo amor do Papa! O que é isso, doutor? É inacreditável. Se já nutria pelo Erasmo o sentimento de fraternidade que une os tricolores, agora somo a isso a solidariedade pelo drama de sua vida. Valeu, muito obrigado.
Não sei de onde tirei fôlego para a caminhada, mas sabia ser importante espairar as idéias entre os ciprestes e eucaliptos que margeiam o caminho por onde passava a velha Maria-Fumaça que chegava semanalmente à Suíça Brasileira. O ar da serra tem suas maravilhas, e me senti melhor após sorvê-lo a passos firmes. Chegando em casa, ao passar pelo vestíbulo, reparei na parede chapiscada, que limita à esquerda a composição geométrica de tijolo transparente que segue sala adentro, a linda dedicatória que o Manfrini deixou ali marcada para sempre, como singela homenagem pelo fim-de-semana maravilhoso que passamos com nossas famílias em Mury. Senti-me estranho. Ao entrar no quarto, danei de gritar: – “É campeão, é campeão!”. Os meninos, assustados, estranharam ainda que carinhosamente minha euforia extemporânea. De seus quartos, onde não sei se sorrindo ou preocupados, os meninos puderam ouvir os gritos misturados ao som da água que descia do chuveiro:
– “É campeão, é campeão!