Num contexto social, parecer é mais importante do que ser. Diante do imediatismo dos tempos, a pesquisa se torna fundamental quando os outros não imputam a certeza de uma realidade fresca e à mão. Não é uma crítica para a humanidade, é constatação: somos avessos à perda de tempo e queremos acreditar naquilo que nos agrada, soa positivo, mesmo que a verdade caminhe n’outra direção. Foi assim com o presidente Peter Siemsen. Dono da gestão que parece ser a melhor dos últimos tempos, o dirigente tricolor compartilhou um áudio que acreditou ser de um dos “criadores da Bossa Nova”, João Gilberto, cantando o hino tricolor. Diversos sites, inclusive o NETFLU, jornalistas e torcedores ilustres – ou não – difundiram a obra. Não era, porém, quem o inconsciente coletivo achou que fosse.
Do Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio, vem a resposta. Introspectivo, caseiro e morando sozinho num apartamento de três quartos, desde o falecimento de sua irmã há pouco mais de três anos, o violonista, cantor e compositor, Anselmo Rocha, foi surpreendido com o “boom” de sua interpretação do hino. Aos 59 anos, o artista, bastante conhecido no meio da Bossa, embora um “José” entre o público geral, nunca teve de atender a tantos telefonemas. Alguns desavisados acharam que fosse estratégia de marketing do próprio compositor, usando a foto de um ícone para tentar pegar carona na imagem. Errado.
– Algumas músicas de minha autoria estão lá no palco MP3. Tem diversas parcerias também. Na verdade, isto que chamam de hino do Fluminense é uma marcha e, como gosto muito da melodia e da letra, eu, como tricolor, quis fazer uma coisa mais moderna, uma samba estilizado. Coloquei todo conhecimento que tenho. Alguém que eu não sei, andou fuçando lá e encontrou. Deve ter chamado atenção dele. Ele extraiu o áudio e colocou no Facebook, atrelado a uma foto do João Gilberto. As pessoas que me conhecem sabem que não uso Facebook, não gosto. Assim como coisas em geral em informática, peço para as pessoas mexerem pra mim. Aí eu recebi um Whatsapp de um amigo meu, falando sobre a indignação de outro amigo porque passaram essa gravação para o presidente do Fluminense. E eu acho mais bisonho que passaram a minha gravação com a foto do João Gilberto. Eu tenho uma profunda admiração pelo trabalho musical dele, só dignificou a música brasileira. Já conversei algumas vezes com o João Gilberto, inclusive, ao telefone. Nesse caso aí, eu estou meio de bobo no terreiro – contou, em entrevista ao portal número 1 da torcida tricolor.
Embora tenha estourado por esses dias, a famosa versão do hino tricolor tem quase 20 anos. Feita perto do final da década 90, numa fita K7, que ainda está sob a posse do verdadeiro autor, o material foi mixado e masterizado por um amigo, pouco menos de uma década e meia depois, passando-o para CD. Em seguida, o áudio foi disponibilizando no site “Palco MP3”. Dono de uma melodia moderna, mas afeito ao passado, Anselmo Rocha fez a gravação num walkman da época, usando um microfone de lapela pendurado na camisa. A canção – ou marcha, como ele prefere dizer – não fazia parte de um CD com 14 faixas, que ele vinha desenvolvendo. O mesmo jamais fora lançado, por conta da morte do produtor Durval Ferreira. Quanto a música que inspira os tricolores, ela chegou a ser entoada no Salão Nobre das Laranjeiras, entre 2006 e 2007, numa seresta que acontecia às quartas-feiras, segundo o violonista. O som original ainda contém aquele ruído característico das fitas, levando um ar ainda mais “cult” ao que se desenvolveu.
As semelhanças entre Anselmo Rocha e João Gilberto não se restringem ao achismo positivo e, de certa forma, justificável, da torcida tricolor. Anselmo, que começou a desenvolver seus talentos a partir dos 15 anos, revela que teve a felicidade de conhecer, depois dos 30 anos, por intermédio de outro amigo, o jornalista, compositor e produtor musical Ronaldo Bôscoli. Também influente na Bossa Nova, Bôscoli ficou extremamente encantado com o talento que observara em seu apê, número 2801, no Barra Mares. Assim que absorveu o impacto, Bôscoli pegou o telefone e experimentou ligar para o saudoso Mieli e Wanda Sá, pregando-lhes uma peça, dizendo que acabara de encontrar o novo João Gilberto. A partir dali, a carreira decolou entre os artistas do meio, mas nunca alcançara o público popular como no caso do hino. Ciente de que a Bossa Nova é um estilo culturalmente fincado na zona sul, ele compreende que esta é a justificativa para que o som se perpetue por lá mais do que nas zonas periféricas da Cidade Maravilhosa. Ainda assim, se incomoda com a confusão em torno da marcha tricolor.
– Me gerou um pequeno desconforto. Inclusive, eu acredito que o presidente do Flu possa ter embarcado na onda da pessoa que mandou pra ele. Ele não deve ser um grande conhecedor de música. Quem conhece o meu trabalho, sabe que canto muitas músicas do repertório do João Gilberto, com harmonia dele. Agora, nessa gravação do Fluminense, eu fiz uma coisa minha. Para não cantar acordes repetidos, fiz uma coisa mais estilizada. Pensei muito isso, foi uma coisa estudada, como costumo fazer. Pego uma música e fico um mês harmonizando. Se o presidente conhecesse um pouco de música, ele saberia que não é o João Gilberto (risos) – concluiu.
Ele há de perdoar o presidente e todos aqueles que compartilharam sem saber que o registro fora dele. O maior elogio, talvez, seja a não diferenciação com a lenda da música brasileira, João Gilberto. A cúpula do Fluminense, no entanto, pode ter certeza que o artista não fará como o seu pai, também tricolor de coração, que chegava a mandar telegramas para o clube quando o time perdia uma partida. Seguindo o legado da paixão herdado não só do pai, mas de toda a família, ele continuará compondo sem estardalhaço, no seu cantinho próximo ao Grajaú, ouvindo o som dos próprios pensamentos entre uma nota e outra. O Flu renovou suas expectativas quanto ao alcance da música. Para quem ainda duvida do resto, sem parecer – ou querer aparecer -, o artista não só tem convicção como pode provar tudo o que diz.
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